Uma crónica de merda

quinta-feira, agosto 15, 2013


HÁ DOIS TIPOS DE PESSOAS no mundo. Os madrugadores, bem-dispostinhos, arrumadinhos e cheios de genica, que acordam ao raiar do dia, metem um café negro no bucho e estão prontos para tudo. O mundo é a sua ostra. Como os invejo.

E depois há os "classe B", onde eu me encaixo: 

Quando sabem que têm de se levantar muito cedo no dia seguinte, deitam-se sob pressão, ordenando ao corpo que adormeça depressa. E ele não adormece. Ficam a ver as horas passar como contas num colar, enquanto andam às voltas na cama.

Adormecem depois das três, o diabo do despertador toca às seis. E eles, colados à cama, que os agarra num abraço lânguido e poderosamente narcótico. Mais cinco minutos. Mais cinco minutos. Mais cinco minutos. Porra! Estou atrasada!

A pessoa levanta-se desnorteada, bêbeda de sono. Tem uma viagem de longo curso pela frente. Enfia um chinelo no pé e desiste de procurar o outro que se escondeu — toda a gente sabe que os desgraçados dos chinelos se escondem. Vai com um pé calçado e outro descalço, olhos remelosos, ligar o esquentador para tomar duche.

Só há tempo para duche, vestir, pegar nas malas e sair [corre, corre, corre, pá!].
Dois sacos ficam esquecidos. Já não há tempo para comer. 

"Estação de Oeiras"

Compra os bilhetes para o comboio e verifica que afinal ainda sobrou tempo. Dirige-se ao Café da estação e — pensando que pode fazer como os outros —, pede também um café.

Mal o café escorrega esófago abaixo, passa pelo estômago e vai directamente para os intestinos, isto tudo em linha recta, garanto-vos —, é nesse momento que a pessoa percebe que fez merda. Como fez. Ah, café dos infernos. Os intestinos contraem-se e dilatam-se com espasmos, como se tivesse despertado um monstro terrível, o Adamastor das Tripas.

"Vai passar. Só preciso de me sentar." O comboio chega, a pessoa senta-se e o monstro continua irrequieto. "Quero sair!", berra ele em fúria.

"Estação de Belém"

O monstro finalmente acalmou. A pessoa respira de alívio.

"Cais do Sodré"

Estação terminal. A pessoa levanta-se, e o monstro redesperta, mais feroz do que nunca. O meu reino por uma sanita. Ai Senhores, agora é que é.

Descobre amargamente que não existe casa-de-banho no metro do Cais do Sodré. Tem de se apanhar o elevador para a superfície e depois a tão desejada casa-de-banho, qual El Dorado, fica por trás do Pingo Doce. A distância é directamente proporcional ao desespero. Paga-se cinquenta cêntimos para entrar e ai se uma pessoa não tem os cinquenta cêntimos certos no porta-moedas. Nem quero imaginar.

O mundo é um lugar hostil para aqueles que procuram loucamente por uma casa-de-banho com a mesma angústia com que tentariam salvar a própria vida.

A casa-de-banho estava limpa. Havia papel higiénico e até piaçaba. Misericórdia.
Não há heróis nestes momentos. A pessoa teve até vontade de chorar.

De intestino limpo e ânimo renovado, há ainda o metro para apanhar e depois o comboio intercidades. Mais duas horas de viagem pela frente. 

O MALDITO CAFÉ-assassino que a pessoa julgava ter expelido até à última gota pelo orifício mais longe da boca manifesta-se agora no estômago. Oh Deuses. Ninguém merece. É como se o monstro tivesse deixado um filho que apanhou o elevador pelo esófago acima. Foram duas horas em que o delicado e feminino chapéu-de-palha que repousava no colo (da pessoa) esteve prestes a servir de saco de vómito.

"Estação Coimbra B"

"Senhoras e Senhores, estamos a chegar à Estação Coimbra B." 
Esteve quase para beijar o chão, a pessoa. Terra firme. 

O cérebro flutua no crânio, coloca os óculos escuros e o chapéu-de-palha que escapou por um milímetro, e promete solenemente nunca mais beber café em jejum às sete da manhã. Isso é para os outros. Arrumadinhos. Bem-dispostinhos.

A beber chá de lúcia-lima,

Hazel

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11 COMENTÁRIOS

  1. Pois é... ter que acordar por volta das 6h da manhã e ficar às voltas na cama até às 3h ou 4h a tentar adormecer, sei bem o que isso é! Quanto ao café, eu adoooro café e raramente o posso beber porque me cai mal.
    Quando tudo acaba bem até dá alguma vontade de rir...mas até lá chegar...longa é a reza ahahah

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  2. Foram poucas as vezes que ri tanto, como agora!

    Parabéns! Maravilhoso texto!

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  3. Cristina Mendes Coelho15 de agosto de 2013 às 19:10

    O que eu já me ri ao ler este post. Pelo relembrar de situações idênticas e pela maneira como está escrito. Fantástico...
    Escusado será dizer, que, como de teimosa não tenho nada (irra), tanto insisti que já me posso dar ao luxo de beber café em jejum. Mas se podia fazer parte dos arrumadinhos, bem dispostinhos, fico-me pelos merdosos a troco de um copo de leite.

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  4. Sou desses da classe B!
    Se tomo coisas quentes muito cedo, aciono o botão turbo do trato intestinal! Uma lástima!

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  5. Sem comentários! Tenho um touro aqui em casa e sei o que significam esses cinco minutinhos!

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  6. Hazel,peço desculpa pela expressão ,mas hoje foi um dia de merda.Que tenhas um bom fim-de-semana,bem mereçes.Bjos.

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  7. :D
    Ficou a história para contar e um início da vossa aventura no mínimo original.
    Feliz que o verde depois se transformou num rosadinho saudável de quem deu uns mergulhos no paraíso. :)
    <3

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  8. hahaha... rí litros e me identifiquei muitoooo!! (não sou nem um pouco 'bem-dispostinha'). Adorei o texto... Queria te convidar para ler os meus também...

    http://gota-na-poca.blogspot.com.br/2013/08/contos-dos-que-gente-escuta-todo-dia.html

    Grande abraço!

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  9. Minha querida Hazel, nem te digo que como amo teus posts peço desculpas, mas fartei de rir aqui com os merdosos,estão magnificamente escritos....bjusssss

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  10. Kkkkkkkkkkkkkk!
    Desculpe, amiga!
    Eu ri.
    Muito!

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