O Frango de Satanás

Abriu há alguns meses uma churrasqueira ali na rua de cima. Desde então, deixei de sentir o perfume doce e limpo da chuva e o odor verde das árvores.

A todas as horas do dia, um intenso e persistente cheiro a frango assado espalha-se no ar, assim como um pum que se julgava inócuo e até inofensivo, mas se revelou agonizante. Um pum cujo cheiro não desaparece nunca. 

(pausa dramática)

Às oito e tal da manhã, o frango assado entra-me a voar pela janela da casa-de-banho, misturando-se atrevidamente com o vapor do meu duche de ninfa, que outrora apenas suspirava a rosas e alfazema. Já deito frango pelos olhos.

Os ventiladores da churrasqueira - ou as ventas de Satanás, como preferirem - vão ao rubro de tanto fumo vomitar ao fim-de-semana, esses dias tenebrosos em que alguém sempre exclama: "Vamos buscar um frango!"

Como se o desgraçado do frango, que está destinado a salvar o almoço tardio, fosse o Messias que vai salvar o mundo.

Mal oiço o "Vamos buscar um frango", imediatamente vejo o pobre frango espavorido a fugir rua fora de asas abertas e a cacarejar, qual personagem do filme "Fuga das Galinhas". 

Não, não vamos buscar porra de frango algum. Deixem o bicho em paz.

Mal-humorada,

Diário de Viagens. Página 1


Escrito dentro do comboio algures entre o Algarve e Lisboa.

Gosto de viajar sozinha, sem que o meu silêncio seja invadido por palavras supérfluas.
Viajar é como viver um caso de amor. Ou de prazer egoísta. Deixar-me seduzir sem oferecer resistência pelo calor de uma nova terra, os seus cheiros, a pronúncia. Pensar que eu podia ficar lá, mas, inevitavelmente, acabo por ir embora, como um amante de uma só noite, o único que alguma vez tive; as viagens.

Dentro da minha cabeça, toca “You could be mine” dos Guns n' Roses, e eu sorrio discretamente, mantendo o registo semi-apagado, silencioso e invisível, em harmonia com o meu velho vestido de lã cinzento e cheio de borbotos. 

O comboio atravessa o Alentejo com o Sol doce e quente a entrar por ambos os lados.
Sinto-me abraçada, amada por esta terra onde não nasci, mas estendi uma raiz fininha e esperançosa. Um dia, Alentejo, um dia.

Quase não se sentem os carris, poderia imaginar que estou a viajar sobre nuvens.
As copas das árvores apressadas enchem-me os olhos, que se alongam de amor.
Obrigada, mundo. Ainda bem que aqui estou.

Sobre carris,

Hazel

Fazer um Banho de Sereia


Todas as mulheres são sereias que navegam na inconstância das marés ao longo de cada lunação. Umas vezes, mantêm-se à superfície, beijadas pelo Sol morno e atrevido.

Outras, mergulham nas profundezas obscuras onde se debatem com limos fantasmagóricos que lhes agarram as pernas, e esbofeteiam peixes-espada que se metem pelo caminho na hora errada e a fazer má cara.

São tantas as vezes que nadam contra a corrente, sentindo-se exaustas, irritadas, incompreendidas, à deriva no mar das emoções. Terrível e mágico ao mesmo tempo!

Sob o olhar cúmplice da Lua que espreita pela janela através dos fios prateados da teia-de-aranha onde uma mariposa acabou de cair, a banheira enche-se de água quente, onde se dissolve um saco de tule com ervas consagradas e sal.

O mundo não existe mais. Só a água e o silêncio que se encontra quando nos deixamos escorregar e nos submergemos totalmente, deixando apenas a pontinha do nariz de fora.

Debaixo de água, ouvimos o ar entrar e sair nos nossos pulmões. Regressamos ao início, à respiração, à nossa essência. Ficamos até que a água arrefeça. Sem pensar, apenas a respirar.

Quando saímos, deixámos de ser a mulher-polvo afogueada que tenta fazer tudo ao mesmo tempo no meio de atarefados cardumes de cores psicadélicas e de gaivotas enlouquecidas, para sermos apenas e tão-simplesmente... uma sereia.

A navegar sem limos,

Hazel