Colaboração com programa de rádio

Lá do outro lado do oceano, no Brasil, existe um programa de rádio infantil chamado Vitrolinha da Rua, que tem o apoio da TV UFPB/TV BRASIL. 

Nesta rádio, contam-se histórias infantis, lendas, há trava-línguas, música, poesia e muita, muita magia. Este é um projecto inclusivo, desenvolvido a pensar nas crianças cegas.

Há algumas semanas, esta vossa escriba, que tem alma de Peter Pan, foi convidada para colaborar com a Vitrolinha, fazendo a narração de uma história infantil.

Sendo eu portuguesa, concebida, nascida e criada em Portugal, tive algum receio que a minha pronúncia talvez não fosse bem compreendida ou apreciada.

Mas o projecto é tão delicioso e cheio de amor, que resolvi mergulhar de corpo e alma... e o resultado desta união entre Portugal e Brasil não poderia ter sido mais divertido e encantador!

Partilho convosco o programa, com o título "A casa da bruxa", que pode ser escutado online, ou podem também fazer download e levar para ouvir no carro com os vossos gaiatos.

Quando ouvirem a pronúncia de Portugal (a partir do minuto 16)... já sabem quem é! grin emoticon



No espírito da Formiga-Rabiga,
Hazel

As Rosas de Heliogábalo - Alma-Tadema

"As Rosas de Heliogábalo" - 1888
Ninguém diria que este quadro, pintado pelo holandês Sir Lawrence Alma-Tadema, tão belo, delicado, leve e perfumado, na verdade, é um retrato perfeito da malvadez requintada.

Heliogábalo é o cognome atribuído post mortem ao jovem imperador romano Marco Aurélio Antonino. Tornou-se Imperador aos 14 anos de idade, foi assassinado aos 18.

Os seus quatro anos de poder (e últimos de vida) foram marcados pela excentricidade e escândalos sexuais e religiosos. Casou-se 5 vezes, uma das quais, com uma virgem vestal. Teve vários amantes do sexo masculino, usava maquilhagem e prostituía-se. Ofereceu uma fortuna ao médico que pudesse operá-lo de forma a ter órgãos sexuais femininos.

O quadro "As Rosas de Heliogábalo" eterniza um banquete onde se vê o Imperador em segundo plano, deitado juntamente com alguns dos seus favorecidos, a observar com deleite os restantes convidados enquanto estes são asfixiados com milhares de violetas, rosas e outras flores que caem inesperadamente de um tecto falso.

Um assassinato perfumado, premeditado por um Imperador caprichoso, intoxicado pelo próprio poder e pelo sentido de beleza até no mais vil e traiçoeiro dos actos.

Sobre o perfume das flores,

Hazel

Dentro do meu Candeeiro mora um Fantasma


O candeeiro da minha mesa-de-cabeceira é uma antiguidade e, por isso, faz mau contacto. Todas as noites, quando o desligo, ele volta a acender-se sozinho. Eu volto a desligá-lo, e ele reacende-se. E torno a desligar, até ele acabar por aceitar que é hora de dormir. A maior parte das vezes, ele reacende-se umas sete ou oito vezes seguidas.

É assim todas as noites, nos últimos anos. Mas agora ele ficou caprichoso. Durante a madrugada, várias horas depois de o ter desligado, sou acordada pelo clarão no quarto. Abro os olhos e lá está ele, teimoso, aceso.

Tem sido sempre à mesma hora. Ele é uma antiguidade, e as antiguidades são assim.
Fazem mau contacto e têm as suas vontades e pertinências.

Só hoje reparei que ele nunca se reacende de dia. Nunca aconteceu, mesmo.
Aliás, quando o ligo de dia consigo sempre desligá-lo à primeira. Concluo que o maroto é um noctívago. Prefere brincar comigo à hora em que o Sol dorme e os mistérios e assombros tomam conta do mundo.

Podia trocar-lhe os fios e o interruptor, para que ele funcionasse como os candeeiros modernos, máquinas perfeitas e infalíveis, sem estes humores e contornos excêntricos de personalidade que assustariam muitas pessoas. Mas... eu gosto dele assim.  
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(Mantenho-vos informados, caso ele se lembre de me surpreender com novas habilidades!)

Encantada com antiguidades caprichosas,

Hazel

Manifesto Anti-Galo de Barcelos


REZA A LENDA que tinha havido um crime e um galego que estava de passagem, principal suspeito, foi condenado à forca. Desesperado, o homem implorou que o levassem ao juiz, que se encontrava a jantar com os amigos. Sobre a mesa havia uma travessa com um galo assado. O galego, insistindo na sua inocência, profetizou:

"É tão certo eu estar inocente, 
como certo é esse galo cantar quando me enforcarem."

A condenação foi em frente. No momento do enforcamento, o galo assado pôs-se de pé sobre a travessa e cantou. O juiz, consciente do erro, correu para o condenado e retirou-o da forca que, graças a um nó mal feito, não o matara.

O Galo tornou-se símbolo nacional desde o séc. XVI. De Norte a Sul do país, várias gerações de artesãos portugueses ― dir-se-ia possuídos pelo espírito do bicho ― não têm feito outra coisa ao longo destes cinco séculos, senão galos de Barcelos.

MEUS SENHORES, ELE ESTÁ POR TODO O LADO. 
Em estatuetas de todos os tamanhos e géneros, aventais de cozinha, azulejos, pratos, canecas, copos, travessas, brinquedos, tabuleiros, bordados, caixas, joalharia, almofadas, toalhas, canetas, saca-rolhas, guardanapos, tapetes, cortinas, relógios, porta-chaves, livros para colorir, colchas, tecidos estampados... ad nauseam!

Nem sei como não está na bandeira nacional, em lugar da esfera armilar. Ontem estava a folhear as promoções dos supermercados e lá estava na secção de têxteis:

"Panos da loiça estampados com o Galo de Barcelos, por 1€."

Com tantos padrões que existem, pelas barbaças de Zeus. Riscas, bolinhas, axadrezado, vichy, cornucópias, losangos, chevron. As modas passam, mas o velhaco do franganete sobrevive a tudo. Pudera, pois se ele cantou depois de ter sido assado, qual zombie de penas estorricadas.

Se houver alguém em Barcelos que esteja a ler isto, peço que encontrem outro símbolo. Um louva-a-Deus, um perú, um gafanhoto ― o que quiserem. Mas concedam descanso ao galo!

Há cinco séculos ― repito, cin-co-sé-cu-los que estamos nisto. Todos conhecemos o Galo de Barcelos, desde que nascemos. Aliás, já o aturamos desde há não sei quantas encarnações antes desta. Por isso, venho aliviar o nosso país com este Manifesto (alguém tinha que fazer isto).

Manifesto Anti-Galo de Barcelos

O Galo de Barcelos é chato.
O Galo de Barcelos nem sequer sabe cantar, porque é desafinado.
O Galo de Barcelos não passa de um frango que foi mal assado.
O Galo de Barcelos é fatela e piroso.
O Galo de Barcelos é um garganeiro que ocupa o espaço todo e não deixa as outras lendas serem também dignamente representadas em panos-da-loiça-a-um-euro.
O Galo de Barcelos cheira mal das patas! 
E tem a crista despenteada!
O Galo de Barcelos merece paz e descanso! 
E nós também! Dele!


Por certo vem nas profecias do Nostradamus que os panos da loiça do Galo de Barcelos serão os últimos sobreviventes após o fim do mundo.
Quem viver, verá!

Horrorizada com a descoberta de um pano da loiça do Galo de Barcelos no fundo de uma das gavetas da minha cozinha,

Hazel

Uma noite de loucos no Hospital Júlio de Matos

Neste último Sábado à noite, estive no Hospital Júlio de Matos.
Fui de livre e espontânea vontade, sem vestir um casaco branco, sabem, daqueles em que nos podemos abraçar a nós mesmos, e que são moda nos hospitais psiquiátricos. haha!

E, olhem, deixem que vos diga: foi uma estadia de loucos...

Tudo começou quando enviei uma foto de um antigo guarda-jóias meu que, caso fosse aceite, passaria a fazer parte de um dos cenários vintage da peça de teatro com o nome "E morreram felizes para sempre".

Em troca, se a candidatura fosse aprovada, eu receberia bilhetes VIP para assistir à mesma peça. Eles aceitaram!

Às 22:00, dei por mim, e mais umas vinte pessoas, fechados numa sala pequena, velha, mal iluminada e cheia de tubos de ensaio, no antigo hospital psiquiátrico.

Foram-nos entregues máscaras cirúrgicas e explicadas as regras. É proibido retirar a máscara durante a peça inteira, falar, andar de mãos dadas, tirar fotografias, filmar e mexer nos actores. Casacos e malas devem ficar no bengaleiro. Todos vão de mãos a abanar, retirados da sua zona de conforto.

É permitido circular livremente, mexer nos cenários, abrir gavetas, armários, portas, baús, livros, ler relatórios médicos, e bisbilhotar tudo o que quisermos. Tudo mesmo.

Todos os convencionalismos ficaram lá fora. A maçaneta da porta mexe-se sozinha, causando um silêncio perturbador na sala onde esperamos o início da peça, sem percebermos de imediato que ela já tinha começado, como uma charada perfeita.

A abertura violenta da porta que dá acesso ao interior escuro do hospital, faz-nos ter mais adrenalina do que sangue a percorrer as veias. De máscaras cirúrgicas colocadas, todos perdem as máscaras sociais e observam sem pudores o que se está a passar a um milímetro da própria pele arrepiada de emoção, abrem e remexem em gavetas, ou sentam-se numa poltrona de veludo vermelho-sangue dentro de um quarto impregnado de perfume de lavanda onde um casal se veste para ir a uma festa. Os cenários estão repletos de pistas.

Nesta viagem no tempo, somos transportados para o ano de 1949, em que o Dr. Egas Moniz recebe o Prémio Nobel da Medicina pela sua maquiavélica invenção da lobotomia.

Algumas das pessoas que estavam a assistir foram levadas para salas fechadas com personagens, ou puxadas para o meio da cena, tornando-se parte activa nela (esta vossa escriba, infelizmente, não teve essa sorte!).

A curiosidade é-nos constantemente espicaçada (cheguei a ver um rapaz rastejar por uma passagem secreta dentro de um roupeiro que o levava para outra sala), levando-nos a perseguir as personagens ao longo de cenas recheadas de mistério, loucura, erotismo, pancadaria, dança, sentido de humor e uma dose constante de ironia. Nenhuma palavra é dita pelos actores durante a peça. E, no entanto, conseguimos acompanhar tudo.

Sentimo-nos como fantasmas que descem as escadarias a correr e caminham a passo apressado através dos corredores escuros e cheios de nevoeiro do "hospital dos malucos" - como é vulgarmente conhecido - a meio da noite.

Várias histórias interligadas desenrolam-se em simultâneo nos diferentes cenários, levando-nos a observar diversos pontos de vista para cada situação. Que belíssima metáfora.

Os actores desta peça de teatro imersível tiveram um desempenho irrepreensível.

Os cenários são riquíssimos, mexendo-nos com os sentidos. Diferentes cheiros em cada sala, cortinas de veludo, toucadores, livros velhos, perfumes antigos, um esqueleto, um picador de gelo (para as lobotomias!), chávenas que abanam sozinhas sobre cómodas, candeeiros com abat-jours de franjas...

Regressamos para casa no fim da peça a reviver mentalmente tudo o que se passou, como se o nevoeiro dos corredores do hospital, de alguma forma mágica, nos acompanhasse, e passamos dias a fio a tirar conclusões atrás de conclusões. Talvez tenhamos sido sujeitos a uma lobotomia, mas sem o picador de gelo, e bem-sucedida...

Agradeço à Produção pela oferta dos bilhetes e pela experiência vivida, e regressarei em Setembro, para continuar a charada.

Na plena posse das minhas faculdades,
Hazel