Tudo sob perfeito (des)controlo

quarta-feira, outubro 05, 2016


Somos inocente e deliciosamente chatos e previsíveis. Faz-se planos para o futuro. Decide-se o que vai ser o jantar de logo à noite, que se põe dentro de uma travessa no lava-loiças para ir descongelando à temperatura ambiente. Planeia-se e reserva-se as férias do Verão com uma antecedência quase deprimente, porque ficam francamente mais baratas.

Escolhe-se a roupa para vestir na manhã seguinte com uma capacidade infalível de previsão meteorológica, digna do Anthímio de Azevedo. Sonha-se com o dia em que finalmente se consegue demonstrar aos sacanas que nos deitaram abaixo quando mais precisámos deles que, afinal, até conseguimos fazer alguma coisa de jeito da vida. Planeiam-se até os dias sem planos. Temos tudo controlado até ao momento em que percebemos que tudo isto está sustentado por fita-cola, cuspo e um clip.

O tapete é-nos puxado debaixo dos pés quando menos esperamos. Mas qual jantar, quais férias, qual dia seguinte, quais sacanas. Que cegueira é esta em que nos encontramos, sempre a planear o futuro, sempre a viver mais à frente, sempre a querer estar um passo adiante do espaço que ocupamos, desfazados do tempo, de nós mesmos e dos outros. Para quê a pressa, se, no fim, façamos o que fizermos, acabamos por ir todos parar ao mesmo lugar - e, no entanto, ninguém para lá quer ir.

Assassinámos a espontaneidade a sangue-frio, e tenho cá para mim que os contratempos inesperados, que nos surgem quando menos jeito dão, são o fantasma da dita que nos puxa o pé no momento em que vamos subir para a cama, para ajustar contas connosco.

Esta semana, a carta Cavaleiro de Espadas surge-nos repentinamente como um vendaval gelado num dia que se vislumbrava cálido e estival. Ninguém estava preparado para ele, todos são apanhados de surpresa, e é bem feita para aprenderem a viver o presente e para perceberem de uma vez por todas que ninguém controla nada. Há quem lhe chame lei de Murphy. Poderíamos também chamar-lhe “abre-olhos”, por nos enraizar e devolver a humildade que havíamos perdido nos atropelos do ego.

É um tormento a incerteza de não saber o dia de amanhã. Por outro lado, sabê-lo amolece-nos a capacidade de estar alerta, de debater-nos pelos nossos ideais.

Se a ignorância nos incita a estender as asas e a aguçar os sentidos para encontrar alimento para o corpo e para a alma, o conhecimento antecipado oferece-nos o conforto flácido - e frígido - de um sofá que se afunda quando nos sentamos, como se nos engolisse. Quanto mais nos enterramos nele, mais camaleonicamente iguais a ele nos tornamos -  até sermos salvos pelo fantasma da espontaneidade, mascarado com a capa dos imprevistos que nos trocam as voltas, que nos toca à campainha de casa para despertar-nos deste sonho em que nos imaginamos seguros e arrumados - como um par de sapatos velhos.

Hazel
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1601
Foto: Sandro Giordano

PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER

0 COMENTÁRIOS

Obrigada pelo seu comentário ♥