A fina arte da velhacaria

quarta-feira, janeiro 25, 2017


Um velhaco é um indivíduo matreiro que se compraz no exercício subtil e ardiloso da malícia - como uma pérfida forma de arte. Lembra-se de detalhes que não ocorrem a mais ninguém, quase levando - não fosse o facto de o desprezarmos - a que lhe ganhemos afeição, pela inegável criatividade e sentido de humor retorcido. Dir-se-ia que é um mestre perfumista que trabalha com quantidades de veneno pequeninas, adocicadas, tentadoras e altamente viciantes.

Suscita-nos sempre curiosidade, embora não gostemos de admiti-lo. Sempre que o desejo de saber salta por cima do muro erguido pela moral, somos caçados na armadilha do velhaco.

No outro dia, qual lebre que passeia despreocupada pelos campos, fui apanhada na rede da curiosidade. Passei um par de horas - tempo muito bem empregue, diga-se - a ler reportagens e comentários sobre o casal que distribuiu água na A1 durante o incêndio que deflagrou no Verão passado. Saciaram a sede de inúmeros desconhecidos que se encontravam presos na estrada cortada, debaixo de quarenta graus, com cerca de mil litros de água que compraram do próprio bolso. O país emocionou-se e agradeceu. Foram elogiados, aclamados heróis. No vídeo que invadiu as redes sociais, via-se a bagageira do Mercedes aberta, de onde saíam garrafas de água entregues com um sorriso aberto.

Cinco meses depois, a vida do casal Lucinda Borges e Paulo Pereira ficou de pernas para o ar. 

A família virou-lhes as costas. Os vizinhos também. Paulo ficou sem trabalho e a Lucinda surgiu um problema oncológico. Chegaram ao ponto de não ter o que comer, tendo de recorrer a um casal amigo para que ficasse com a filha durante o Natal por não terem dinheiro para a ceia nem para lhe comprar um presente. O país, sensibilizado com a injustiça, quis retribuir. As ajudas não tardaram, paralelas à curiosidade pelo inusitado comportamento dos conterrâneos do casal. 
As equipas de reportagem que se deslocaram a Avanca, Estarreja, indagaram junto dos vizinhos e até do pároco da freguesia o motivo pelo qual Lucinda e Paulo estavam a ser alvo de tanto azedume e revolta ali, quando, no resto do país, o sentimento geral era precisamente oposto.

Foi neste ponto que a fina arte da velhacaria se manifestou. O Mercedes causou pruridos nos cotovelos das pessoas e o passado de Lucinda e Paulo foi esmiuçado e amplamente especulado nos meios de comunicação social. Não irei detalhá-lo nem ajuizá-lo. Eu não estava na A1, mas estou-lhes grata como se tivesse estado.

O mundo não se divide em bons e maus. Toda a gente tem culpas no cartório, a diferença é que o casal da A1 está exposto à opinião pública - e cercado de inveja - enquanto os podres de todos os outros continuam escondidos. Sim, merecem ser ajudados, mesmo que tenham alguma vez cometido erros - quem nunca falhou? - porque são seres humanos e porque aquilo que eles fizeram foi inegavelmente generoso, uma iniciativa louvável que inspirou milhares de pessoas a tornarem-se seres humanos melhores - com excepção dos seus familiares, vizinhos e do pároco de Avanca.

Esta semana, o arcano Valete de Espadas tenta-nos com o veneno da velhacaria, dando-nos a possibilidade de escolher pensar por nós próprios sem nos deixarmos influenciar.
Nós conseguimos ser melhores do que isso.

Hazel
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1616

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