Em busca do tesouro esquecido

quarta-feira, fevereiro 22, 2017


O olhar insinuante e furtivo de Ofélia é, reflectido em mim, apanhado de flagrante pelos olhos matreiros do cavalheiro sentado na mesa atrás e, de imediato, ela fecha-me e atira-me para o fundo da bolsa, de onde retira um leque perfumado, que abana com petulância. O seu peito de pomba, empoeirado com pó-de-arroz, palpita como se o espartilho lhe empurrasse o coração para perto da boca.

Concede-me a honra desta dança?, arrulha o indivíduo ao seu ouvido. O vestido rodado parecia flutuar pelo salão, roçando nos outros vestidos de cores pastel, que deslizavam entre notas musicais, rendilhados e sussurros.

Saí do compartimento da bolsa bordada sempre em grandes ocasiões: lábios retocados com discrição em bailes onde se decidiam destinos apenas com a cumplicidade de um olhar; lágrimas comovidas em casamentos, que eram educadamente secas com lenços monogramados; o tule preto que se puxava com circunspecção do chapéu num ou noutro funeral.

No quarto de Ofélia, as paredes rosa-escândalo não raras vezes me viram abandonar em suspiros aos Nocturnos de Chopin entre as fiadas de colares de pérolas perfumadas com eau de toilette e a escova de prata com cerdas de crina de cavalo branco, sobre a penteadeira de madeira marchetada.

Quando fazia um passeio pelo campo acompanhada do cavalheiro dos olhos matreiros, Ofélia deixou-me cair para o chão sem que desse conta. Passei o Outono e o Inverno entreaberto debaixo das folhas castanho-dourado dos plátanos. Conheci a doçura do orvalho que escorria por mim todas as madrugadas, o cheiro da terra molhada e o despertar dos pássaros -, a mais bela sinfonia.

Um caracol fez de mim abrigo e, durante muitos dias, partilhámos a solidão e o silêncio. Ofélia, os bailes e os colares de pérolas pareciam-me agora tão distantes e pequeninos em comparação com a grande alegria que foi para mim conhecer este outro pedaço do mundo.

Ao romper da Primavera, uma mulher com um chapéu de abas largas caminhava à sombra dos plátanos sem quase fazer barulho, tendo como única companhia duas borboletas de asas brancas. Estendeu as mãos, que me descobriram por entre as ervinhas verdes. Os seus olhos sorridentes, reflectidos em mim, tinham sulcos que pareciam bigodes de gato. Eram sinceros, bondosos.

Observou-me e deixou-me ficar. Não precisava de tesouros. Nos seus olhos, o Sol brilhava a partir de dentro. Um baile de flores que dançavam com a brisa morna cobriu-me totalmente. Nunca me senti tão feliz.

O arcano Nove de Ouros inspira-nos a olhar para dentro e descobrir tesouros perdidos, esquecidos ou mesmo abandonados. Já temos tudo o que precisamos, aqui, agora. Dentro de nós. Quem duvidar, que procure bem.

Hazel
Consultas em Oeiras e online
Email: casa.claridade@gmail.com

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1620
foto: imediacreatives.it

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