Bem-viver

quinta-feira, abril 06, 2017


«Ai filha, é aqui, aqui mesmo ao fundo das costas, ai que dor», gemia a tia Carlota, enquanto esfregava as cruzes com a mão direita cheia de anéis de prata. Era uma mulher estupenda. Grande, forte, de ancas largas e seios fartos que denunciavam um gosto particular pelo erotismo vivido secretamente nos seus tempos de viço.

«Instalaram-me uma antena ‘paroloca’ no quintal, diz que é para apanhar mais canais, mas eu tenho lá tempo para ver televisão, filha». Padecia de todas as maleitas conhecidas e mais algumas ainda-por-inventar — mas jamais de desânimo, abençoada —, que desapareciam como gelo em dia de Sol mal subia os degraus do autocarro, de mala de viagem pela mão.

Nunca se sabia por onde andava. Viajava com a sofreguidão de um fugitivo que leva a foice da morte atrás de si. Poucas vezes privei com a inquietante senhora; via-a quase sempre nos funerais e, até mesmo em tão circunspectas ocasiões, a sua presença era um vendaval quente e colorido, abundante de beijos lambuzados e repenicados que distribuía sem poupar saliva, enquanto relatava, a uma conveniente distância do finado e dos que o choravam, as novidades da última excursão a Benidorm, a Paris, a Fátima, a Ceuta, a Marrocos.

De tez bronzeada, como se tivesse condensado dentro de si o Sol do deserto do Saara, a sua alegria vibrante fazia-me acreditar que só pela sua chegada tinha começado uma festa. As suas roupas tinham padrões que nunca combinavam entre si, como pessoas de diferentes nacionalidades a falar ao mesmo tempo em diversas línguas. Nela, fazia sentido.

Esta semana, o arcano Rainha de Ouros inspira-nos a temperar a vida com especiarias, a rodopiar com o seu perfume extasiante e a deliciar-nos com todos os pequeninos prazeres que conseguirmos alcançar, nutrindo o corpo e a alma. Urge devorar a vida com volúpia. Aqui, agora. Já. Pela nossa felicidade e pela dos outros.

Imagine o que seria se cada leitor decidisse hoje fazer algo simples, prazeroso e diferente. Mesmo que esteja a ter um dia difícil. Melhor: não imagine, faça. Prove a si próprio que consegue sair da norma e permitir-se um momento de prazer, tenha a idade que tiver: recorte esta crónica, faça um avião de papel com ela, escreva com um marcador “Abrir em caso de tédio”, e atire-o pela janela!

Que esse avião de papel represente para si um pequeno prazer que dará início a muitos outros (com pontuação a dobrar se alguém abrir o avião para ler). Desafio-o.

Hazel
Consultas em Oeiras e online

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1626
Foto: Wetmount, licença CC0

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2 COMENTÁRIOS

  1. Oi? Estava passeando pelo mundo dos blogs e este em especial, me fez lembrar de você! http://www.susanbranch.com/making-a-home-decorating-styles-beatrix-potter-cottage-art-of-the-home/

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  2. Uma feliz Páscoa para vocês! Beijos!
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