A Página Cento-e-Oito


Entrou pela janela ao fim da tarde, lançada por uma rabanada de vento que derrubou o porta-retratos. Os olhos do gato, que acordou assarapantado, seguiram a queda lenta até aos meus pés de uma folha que se enrolou sobre si como as rosas-de-Jericó quando rolam pelas areias quentes do deserto.

Tentei atirá-la pela janela, mas os zéfiros sopraram-na de volta, contra o meu peito. Está bem, fico contigo. Deixei-a cair com displicência sobre a mesa de onde vos escrevo, entre o dicionário de português forrado a tecido cor de poeira e o candeeiro antiquado de quebra-luz verde-duende.

Fui dar com ela no chão, indiferente à doçura do crepúsculo matutino, amuada como donzela desprezada. O orvalho nos seus veios escorreu até ser gota e espelhou o meu olhar, como se um olho sem vida me observasse. Estava amarfanhada, claramente contrariada. Perguntei se preferia ser esticada e colocada como marcador de livros.

Como se pressentisse o ultraje, a folha rodopiou para fora das minhas mãos numa valsa exaltada e dramática. Baixei-me para a agarrar e voltou a escapulir-se como um pardal, fazendo-me persegui-la, ora acocorada, ora de pé.

Anda cá, se te apanho vais parar dentro de uma moldura de vidro 
e ficas para sempre esparramada num quadro para o qual ninguém vai olhar.

A folha-donzela voou com ímpeto suicida pela janela, mas foi salva pelo bailado fantasmagórico das cortinas brancas. Aconcheguei-a entre as mãos como um passarinho assustado e coloquei-a respeitosamente sobre os livros, na estante da sala, para que tivesse tempo de se recompor — antevendo que acabaria por reaparecer noutro lugar como obra de alguma assombração.

Passei essa noite a sonhar com o rangido das florestas, árvores que se abraçavam umas às outras de ramos estendidos e vozes de velhas cansadas que falavam através dos vendavais.

Acordei com a roupa da cama caída no chão, sentindo-me nua e observada. Era ela.
A folha. Na minha mesa-de-cabeceira. Tive a clara percepção que os sonhos que sonhei não eram meus, mas dela, memórias da floresta. Desfazendo-me das teias oníricas, disse-lhe bom dia e saí para trabalhar.

Quando regressei, já não se encontrava ali. Procurei-a por toda a casa sem sucesso. Senti um vazio pela sua ausência, uma tristeza difícil de explicar, a que acabei por me acostumar com o tempo — como um tempero que impede a alegria em excesso de se tornar ofensiva e imoral.

Mal me lembrava da folha até regressar a Primavera, quando reorganizei os livros nas estantes para espantar as energias invernosas. Eis então que a encontrei: enamorada da página cento e oito de “Amor de Perdição”, o papel já tatuado pelos seus veios. Camilo Castelo Branco teria compreendido tamanha devoção.

O arcano Cavaleiro de Copas sussurra-nos levemente ao ouvido, inspirando-nos a nunca deixar de procurar o caminho do amor.

Fechei o livro com delicadeza, sem retirar a folha e arrumei-o entre “A Relíquia” e “A Correspondência de Fradique Mendes” (para que o fino humor queirosiano aligeire a trágica perdição camiliana).

Jamais suspeitaria que ela fora uma mulher — que, de tanto chorar por um desgosto de amor, ficou seca, mirrada — transformada numa folha. Ficaria de coração partido se alguém me dissesse que as misteriosas e inexplicáveis gotas de orvalho eram reservas de lágrimas esquecidas dentro dos seus veios. Não importa.
Agora sorri, perdida de amores pela página cento e oito. Moram uma na outra.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1680
foto:  kellepics, licença CC0

Ai Jeremias


NÃO HÁ REMÉDIO que te cure essa urticária, Jeremias. Enfiou-se-te por entre os dedos das mãos e dos pés (não vamos contar aos senhores sobre as zonas pudibundas onde ela também comicha, fica descansado, hã).

Todo tu comichas em formigas-de-asas peludas e invisíveis que te alfinetam a cútis e o ânimo. Não te mexes, empastelado como os pastéis-de-bacalhau fritos há uma semana na tasca no Javardo. Esperas que alguém te apresente garantias para arriscar — e fazer algo da tua vida.

Ninguém o vai fazer, inocente pastel. As pessoas não querem saber. Estás por tua conta desde que nasceste. 

Bom Jeremias, a única garantia que temos na vida é a morte (e os impostos, esses também são certos). E, Jeremias, não é já a morte, por si, garantia suficiente para te agarrares à vida com as mesmas ganas com que te agarras à testiculária quando a urticária se te assanha?

A morte passou de alegoria de capa preta em noite-de-bruxas a realidade bruta quando a viste no rosto lívido daqueles a quem já disseste adeus, mas nem assim aprendeste. 

Quando a memória fria e metálica da foice sinistra se te olvidou do coração, voltaste ao de sempre: que a ossuda só leva os outros e se vai esquecer de ti. Ninguém acredita nela, com excepção dos que receberam más notícias do médico, os poetas e os desesperados.

Aconchegado no sofá que já tem o molde do teu corpo pesado e indolente, ficas a olhar para a porta da rua à espera de ouvir bater:

«Abre, em nome da Vida! 
Trago as garantias que precisas. 
A meu lado, vêm a Fada-dos-Dentes, o Pai Natal e o Coelho-da-Páscoa, como testemunhas. 
E uma bacia de água-de-malvas.  Para o prurido.»


Só que não. Enquanto estiveres vivo, estás a jogo e podes sempre reformular as tuas escolhas. Que esperas? A vida não te vai bater à porta, porque ela já vive na tua casa. 

Além de que as portas são propriedade da morte. E as janelas, da vida.

O arcano Sete de Copas aparece como uma urticária inesperada em zonas indecentemente impróprias, atiçando-nos a tomar decisões e a fazer escolhas enquanto não passamos para o reino-que-há-de-vir. 

A ver se quando chegar a hora de transpor a porta de saída, os anjos deixam de se deprimir com a costumeira expressão (desa)finada de lamento, por morrer sem ter vivido; de quem permaneceu na eterna espera da divina garantia de que viver não seria arriscado demais. Acorda e abre as cortinas, Jeremias. Ai Jeremias, Jeremias.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1677
Foto: StockSnap, licença CC0

Previsão meteoro(i)lógica


Chove sem parar. O cheiro doce da água, que se sente no fundo da língua, encontra-se em todas as ruas, embora se tenha tornado imperceptível como um perfume que se usa há demasiado tempo.

Podemos deitar fora os chapéus-de-palha, os fatos-de-banho, os colares de conchas. São inúteis também os chinelos-de-enfiar-no-dedo, as sombrinhas de papel que se mergulham entre as pedras de gelo nas bebidas à beira-mar, bem como as toalhas de praia com desenhos de palmeiras. E os gritantes flamingos rosa-choque insufláveis. Porque vai chover — para sempre.

Prevê-se que o chão das casas irá atapetar-se de musgo fofo e que a humidade cresça pelas paredes, raiada em tentáculos finos de verde-esmeralda. Pingentes de avenca suspendem-se nos tectos sobre camas feitas de lençóis de água.

À mesa, serve-se o jantar em pratos de vieira e vertem-se as bebidas de dentro de náutilos que ecoam o som das ondas distantes e pensativas. Trombas-de-água percorrem as ruas da cidade como crianças que brincam sem hora marcada para fazer os deveres de casa.

Vai chover para sempre. 

Quando o Estio colorir a pincel de cerdas de luz as ervas nos campos em tons sobrepostos de amarelo-seco. Quando o estrídulo das cigarras penetrar o silêncio quente de fim-de-tarde submerso no céu azul-ciano com riscos de avião.

Quando, nas viagens de férias, virmos caminhar árvores cansadas como donas-de-casa vindas da mercearia, os ramos carregados de frutos açucarados pelas ondas radiantes do Sol que não concede tréguas. — Ainda assim, a chuva continuará a cair.

Mesmo que não a vejam. Ainda que não vos molhe a roupa no estendal, tesa e ressequida pelo calor, cairá torrencialmente sobre a terra. Encontrá-la-emos nas lágrimas de riso, no suor, na saliva, nos fluidos de amor que trespassam as camas desfeitas.

Sempre a chuva. Em todo o tempo, águas que lavam, que purificam, que inundam, que viajam incessantemente pelo interior dos corpos, enquanto houver um coração a bater, enquanto houver sangue a correr, enquanto houver amor para viver.

Vai chover para sempre, com os deuses no Olimpo reunidos num opíparo banquete, brindando néctar em taças maiores que todos os oceanos fundidos num só, e uma pequena gota derramada equivale a uma vida inteira de chuvas torrenciais, abundantes, nutritivas. Assim é.

O arcano Dois de Copas salpica-nos em água doce e límpida, como o brilho aquático dos olhos sinceros que desaguam no fundo dos nossos, numa confluência livre de obstáculos e hesitações — a jorros —, de dois rios cristalinos; o amor que torna dois, um. A chuva veio para ficar.

Mais vos digo; a quem segue as previsões meteoro(i)lógicas: precipitem-se nesta precipitação e deixem ficar o chapéu-de-chuva em casa.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1676
Imagem: Thommas68, licença CC0

A Vendedora de Ovos


A SENHORA-GALINHA usa quase sempre o mesmo kispo cor-de-papas-de-aveia, a condizer com o tom das asas das suas galinhas. Roliça e muito baixa, encontro-a sempre sentada em doce pacatez sobre um banquinho que desaparece debaixo das saias, dando a ideia de estar a chocar os ovos que tem para venda.

Ao seu lado, sobre as pedras da calçada, as caixas de madeira cheias de ovos, alguns das suas galinhas, e um ou outro com o carimbo vermelho do aviário, mas quem é que vai reparar.

A tranquilidade de quem já viu muito e por isso sabe que não há penas que valham apoquentarmo-nos com pouco, fá-la esperar pelas clientes, quer chova, quer faça Sol, com o mesmo sorriso reconfortante que lhe ilumina o rosto trigueiro, salpicado por uma constelação de manchas deixadas pelos Verões, beijos de Sol que nunca desaparecem.

O olhar astuto, de quem faz as contas de cabeça com a mesma genica que uma galinha depenica dois grãos de milho, segue-me com atenção à medida que desço as escadinhas da vila de Oeiras pela manhã, sempre apressada como a lebre-das-maravilhas, numa maratona contra os ponteiros do relógio.

Retribui os meus bons-dias, enquanto choca os seus ovos com mansidão. Sei que me lê como a um livro, que percebe quando estou contente ou cabisbaixa. 

Deixo, pois também a leio: naquele vislumbre de breves segundos, sei que miga com paciência o pão velho para fazer papas para as galinhas, que recolhe os ovos com as mãos pequeninas e amorosas, as mesmas que não sabem escrever muito bem, mas sabem amar. Às vezes é dura com as palavras. Mas nem sempre. Há muitos anos que aprendeu a escolher quando falar e quando guardar silêncio, e a manter uma certa reserva com as pessoas. Sei tudo isso sem nunca termos falado — e aposto que ela sabe outro tanto de mim. Ou mais.

A senhora-galinha é a derradeira guardiã dos contos inventados e por inventar, das fábulas das cegonhas e das raposas, das galinhas com dentes, dos coelhos com asas e dos elefantes voadores. 

É por ela que ainda existem ovos de ouro; são exactamente esses que choca sentada em frente ao muro de cimento que não tem cor nem luz, mas que ganha vida e apenas existe por ela estar ali, assim como aquele fragmento de dia é essencial para preservar a doçura trigueira das minhas sardas de menina que um dia serão também manchas da idade, beijos de Sol dados ao longo de muitos Verões — como os seus. Fazemos parte da vida uma da outra. Somos amigas, sem sequer nos conhecermos.

O arcano Três de Copas inspira-nos a encontrar alegria, doçura e amizade ao virar da esquina — e quando não o encontrarmos, talvez porque já escasseiem no mundo (ou porque nem todas as localidades têm a sorte de ter uma senhora-galinha), sejamos nós a levá-lo.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1671
Ilustração: Prawny, licença CC0

O Último Dia


«Observo sem emoção o burburinho de gente desinteressante que se arrasta com pachorra de réptil anafado sob o Sol vespertino, esquecendo-me da minha própria existência. Como um fantasma. Ninguém nota a minha presença. Nem eu.

Tudo é temporário. Sei que um dia voltarei a encontrar-me só. A caminhar sem destino numa estrada sem fim, sem anoitecer nem amanhecer. Sem tempo, sem calor, sem vida, sem amor. Vivi vorazmente, com sofreguidão e ansiedade.
Não desperdicei tempo. Consumi-o. Esgotei-o.

(Parágrafo. Um suspiro abafado.)

Sinto-me triste. Choro sem lágrimas. Nutro, mas fico com fome — de amor. Florbela.»

A assinatura em caligrafia elaborada, trémula e cheia de arabescos vertiginosos contrasta com a letra miudinha e tímida que parece pedir desculpas por ocupar espaço na folha branca que as suas mãos frias dobram meticulosamente.

Lambe a dobra do envelope. O sabor acre da cola invade a língua como um gesto brusco desfaz cruelmente o encantamento de uma paixão imaginada.

Lançou a carta para o rio e ficou a vê-la deslizar na superfície espelhada de água doce, entre os patos encardidos pela poluição, uma garrafa vazia de água mineral que flutua com o gargalo virado para cima e um tronco oco e sem graça.

As suas palavras, abandonadas ao naufrágio, nunca foram lidas. Desfizeram-se em farrapos entre os detritos e o lodo, em parte incerta, como um eco que morreu mudo por não ter encontrado paredes onde ressoar.

Não vale a pena. Nem a pena, nem as asas, nem o pássaro a voar no vale, porque não há vale nem pena. O vale tornou-se silencioso e sombrio: os ninhos, a esperança, as flores e os frutos foram devorados por uma nuvem passageira cinzenta-escura com criaturas fantásticas esculpidas pelas correntes de ar. Quando o vento mudou de direcção e soprou de Norte, a nuvem abriu uma boca enorme e engoliu toda a vida. Ficaram as árvores nuas, desprotegidas e tristes. Não vale a pena. Não vale a vida.

Abotoou o casaco junto ao pescoço e regressou a casa em passo seguro e indecifrável, impossível de denunciar as suas intenções. O gato deitado no muro forrado de musgo seco seguiu-a com o olhar velhaco e vigilante, até a porta de casa fechar pesadamente atrás de si, enquanto uma atmosfera de penumbra húmida e lúgubre a recebia.

O dia amanheceu com a janela do quarto cheia de pássaros, uma cortina de penas macias que escondia o olhar sem vida e o frasco dos comprimidos caído no chão.

O arcano Cinco de Copas sopra como o vento frio que nos entra na parte de trás do colarinho, confrontando-nos com o desconforto da falta de um agasalho. Por muitos casacos que se vistam, o frio não cessa de fustigar o corpo e o coração. Se encontrar alguém triste, agasalhe-o com a única fonte de calor capaz de salvar vidas: um abraço.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1670
Foto: Foundry, licença CC0

Medo do que os Outros Possam Pensar


Alzira preferia morrer a sujeitar-se ao vexame insuportável de se separar do marido, que desprezava secretamente, mantendo durante toda a vida um casamento falecido, sem jamais suspeitar que o objecto da afeição do seu consorte era o Peixoto do talho.

O Peixoto, robusto e hirsuto, nunca cheirava a carne, mas a colónia-de-bebé. Viu-se forçado a herdar o negócio do talho que era do pai, e já tinha sido do avô, mas o que sempre quis foi ser maquilhador como a Xana, a sua amiga lésbica. A Xana tinha (quase) tudo, a profissão dos seus sonhos e uma sexualidade livre e publicamente assumida.

Para evitar críticas e aborrecimentos, Xana nunca foi mãe, apesar de sempre o ter desejado ardentemente. Tornou-se madrinha de uma menina já adolescente que se encontrava num centro de acolhimento de crianças e que era demasiado crescida para que alguém a quisesse adoptar. Tinha sido deixada recém-nascida dentro de uma alcofa sem um bilhete sequer. Chama-se Anita.

Nunca se suspeitou que Anita era filha da Alzira com o namorado que teve antes do marido (um cretino qualquer armado em fidalgo que não quis assumir a paternidade porque iria prejudicar os estudos e arruinar o estatuto de menino-de-bem).

Quem realizou o parto, com a máxima discrição, foi aquela que viria pouco depois a ser sua sogra; que arranjou maneira de casar Alzira às pressas com o filho, uma conveniência supostamente para Alzira não cair em desgraça — mas, na realidade, tinha visto pelo buraco-da-fechadura o filho agarrado ao Peixoto, e tinha medo das bocas-do-povo perante tamanho escândalo.

O inconsolável Peixoto passou anos a chorar enquanto cortava bifes e enchia salsichas frescas, sem que ninguém soubesse o motivo. Só Xana o conseguia animar quando o maquilhava e o transformava em mulher para irem sair à noite.

Por medo de cometer suicídio social, todos preferiram assassinar os seus próprios sonhos e desejos, convictos de que existe apenas um caminho possível e que este culminara num beco sem saída, onde se resignaram a permanecer, aprisionados pelo medo-do-que-os-outros-possam-pensar.

O arcano Oito de Copas questiona-nos: estamos onde realmente desejamos estar, ou onde os outros esperam que estejamos? Ficamos porque estamos felizes, ou porque temos medo de ir embora e do que os outros possam dizer ou pensar?

É mais importante agradar aos outros ou a nós? O que gostaríamos de mudar neste preciso momento? E estamos à espera de quê, carago?

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1656
Foto: shawnrandall, licença CC0

Laboratório do Amor


O amor é urgente, desajuizado e ridículo. Eventualmente, causa até um bocado de nojo, podendo mesmo chegar a induzir em gregorianos espasmos pré-vómito aos que, frustrados nas suas ilusões, deixaram de acreditar porque o tomaram por uma âncora que estanca a fragata em alto mar, quando o segredo está nas velas que a fazem deslizar, engolindo céu, sol, estrelas, mar e vento.

É uma carga de trabalhos, disso não há dúvida. Não se pode amar em part-time, ou tirar férias do amor. É um trabalho para escravos que se deixam capturar de livre vontade e que apenas podem ser remunerados com amor. Quem for mal pago, começa a desmazelar-se no serviço.

Nada sabendo de comprovado sobre tão misterioso e hermético tema, reservado aos poetas e aos loucos, publico o resultado de uma longa e minuciosa pesquisa realizada em laboratórios da-mais-fina-e-excelsa-qualidade sobre as transformações dos vinte aos quarenta anos nas artes de l’amour:

Aos vinte anos, já sabemos o que queremos — ou julgamos saber.
Aos quarenta, sabemos o que não queremos.

Aos vinte, preocupamo-nos em agradar à família.
Aos quarenta, que se lixe o que pensa a tia, a prima ou o periquito. Quem sabe da nossa vida somos nós, ora.

Aos vinte, acreditamos em príncipes encantados.
Aos quarenta, voltamos a acreditar neles, porque no intervalo conhecemos sapos — e se há sapos, tem de haver, pelo menos, um príncipe (segundo dados avançados pelo cientista Walt Disney).

Aos vinte, não temos medo de amar.
Aos quarenta, somos uns cagarolas, cheios de medo, mas amamos na mesma.

Aos vinte, julgamos que vamos viver para sempre e que não precisamos de dormir.
Aos quarenta, não temos tempo a perder e só fazemos uma directa em troca de amor eterno.

Aos vinte, não gostamos de ouvir conselhos.
Aos quarenta, desejaríamos ter quem no-los pudesse dar.

Aos vinte, temos a pele esticada e viçosa.
Aos quarenta, temos que aproveitar antes que isto caia tudo (!), benza-nos Afrodite.

Aos vinte, achamos que já sabemos tudo.
Aos quarenta também.

Se o digníssimo e marotíssimo leitor tiver idade compreendida entre os vinte e os trinta, já sabe com que contar quando chegar aos longínquos quarenta. Estatísticas e experiências laboratoriais indicam que tudo tem a tendência a melhorar. Ou piorar. Já nem sei. Os estudos têm resultados contraditórios.

Se tiver entre quarenta e cinquenta, venham de lá esses ossos num sentido e compreendido abraço.

Se tiver mais de sessenta, peço que colabore neste estudo, a bem do destino da Humanidade e da preservação de tão raro e valioso bem — l’amour — enviando para o meu email a sua história de vida e de amor para ser apreciada pelos nossos cientistas-do-amor.

O arcano Dois de Copas abraça-nos como uma balada dos anos oitenta, inspirando-nos a encontrar o amor, primeiro dentro de nós, depois nos olhos de alguém. Abençoados os que o encontraram. Boa sorte aos que procuram.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1652
Ilustração: Kaz, licença CC0

A Caixa de Música


Cravei a faca de um dos lados e torci-a para a frente e para trás até destruir sem remorsos a caixa de música. A pequena e delicada bailarina que rodopiava como Terpsícore, a musa, caiu para o chão na sua lividez de plástico sem vida, desabitada de alma e de calor. Voltei a enfiar a ponta da faca e desencaixei o mecanismo que tocava “Speak softly love” da saga “O Padrinho”, que guardei no bolso como um tesouro.

O Domingos era um homem peculiar, excêntrico, uma criança de humores voláteis e efusivos num corpo adulto, enorme e espaçoso como um Buda (nem sempre) sorridente. Mau grado o seu temperamento irascível, recebia-me sempre com um afecto e uma alegria que me faziam estalar as costelas no seu abraço exagerado, sentido e cilíndrico.

Os livros amontoavam-se nas prateleiras. Romances, poesia, ficção científica, erotismo, ocultismo, até mesmo pornografia. Não havia assuntos tabu, tudo era legítimo, digno de existir, intocado pela peneira da moral e da hipocrisia. No armário de portas de vidro, os bibelots inúteis acumulavam-se às dezenas: os patinhos de porcelana, as nossas-senhoras-de-Fátima, chávenas de chá desirmanadas, amuletos exóticos, toda uma série de quinquilharia que coleccionava, incluindo uma estatueta do Diabo.

«Mas, se reparares, estão todos de frente 
para dentro de casa, 
só o Diabo é que está virado lá para fora, 
para o lado da janela», e ria-se com satisfação. 

As suas histórias de fantasmas e outros assombros nunca me cansavam, e ele deleitava-se por ter quem lhas escutasse com o mesmo prazer que as contava. Gabava-se que, quando novo, era forte como um touro, corajoso e — espante-se — pouco modesto. Fazia apostas com os amigos que o levavam a atravessar o cemitério de uma ponta à outra pela calada da noite.

Numa dessas brincadeiras, desafiaram-no a derrubar a porta de uma casa assombrada onde ninguém conseguia entrar. De lanterna em punho, deu-lhe vários encontrões sem que esta cedesse. Na derradeira investida, a porta abriu-se abruptamente e o bom Domingos estatelou-se no chão da casa.

A lanterna apagou-se — e não tornou a acender. Se tinha entrado em grande velocidade, mais depressa ainda se pôs ao largo, e acabaram-se ali as apostas. Ria-se muito. Nunca soube se estas histórias foram mesmo vividas ou produto do seu sentido de humor que fazia as delícias do meu. Que importa.

Escondida à entrada da enfermaria, com receio que alguém me visse suspensa entre o choque e a fragilidade, observei ao longe o que restava do meu amigo. Respirei fundo e acabei por entrar em silêncio, mal tocando com os pés no chão. Conversámos sobre banalidades. A comida era má. O que caía bem era um copo de vinho branco. As enfermeiras eram simpáticas. «Gosto muito de si, Senhor Domingos, sabe disso, não sabe?», «Lá estás tu, o Senhor está no céu».

Meti a mão ao bolso e retirei o mecanismo da caixa de música, «para pôr a tocar quando vier a noite, se se sentir sozinho.» Olhámo-nos com tristeza. Sabíamos que nunca mais nos veríamos. Nessa noite, quando já estava deitada, ouvi a música tocar dentro de mim. Soube que ele estava a escutá-la naquele momento. No dia seguinte, partiu. Nunca mais tive uma caixa de música. Nunca mais tive um amigo assim.

O arcano Cinco de Copas ensina-nos que, apesar de todas as perdas que nos vão despedaçando ao longo da vida, não temos o direito de parar. A melhor forma de honrar os momentos bons é recordá-los com amor e dar-lhes continuidade em nós, com o que nos resta. Mesmo que tenhamos de terminar de escrever uma crónica a sorrir e a chorar ao mesmo tempo.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1639
Fotos: Luiz-Jorge-Artista e 422737, licença CC0 

Crónica de um Funeral Vivido pelo Morto


A maçaneta da porta gira devagarinho e todos dão um passo atrás. Mal respiram, os cretinos, com medo que o camarada aqui da sala ao lado se tenha levantado do caixão. Afinal era o padre que tinha ido à casa-de-banho contígua, deixando-os à espera enquanto foi enviar para inglório e fétido destino final o almoço feito pela sua discreta afilhada.

Nem lavou as mãos e agora está a dar um passou-bem ao artolas do Artur. Bem feito, que esse caloteiro ficou a dever-me dinheiro. Agora é que vejo bem daqui de cima, que grande calva de Santo António tem este magano. Vinte anos de amizade e nunca tinha reparado; o tipo é um homem grande — embora não seja grande homem.

Lá vem a minha sogra, toda de preto-corvo por fora e laranja-euforia por dentro, directa ao esquife como uma seta para me pespegar os lábios franzidos na testa fria-e-húmida da saliva de tantos beijos carregados de obrigação e fingimento.

Rais’parta a velha, deixou-me sujo de batom. Oh Alzirinha, anda cá e limpa-me a testa, não me deixes ir assim para a eternidade. Bem lhe ponho a mão no ombro, mas ela aconchega o casaco arrepiada com as correntes-de-ar e não me vê. Coitadinha, com a camada de sedativos que tem em cima, se olhar para o que resta de mim até me deve confundir com o forro de veludo.

Vou puxar os pés ao Artur esta noite, quando se for deitar. Que desplante, a deitar os mirones à minha Alzirinha, cheio de gulodice. Não só lhe puxo os pés como lhe dou um esticão no fecho-éclair das calças para lhe entalar o farfalho, conta com isso, pá. Cá está o Barata, bom homem. Obrigado pelas rosas brancas, amigo. Um espinho crava-se-me nas mãos, mas não sinto nada.

“Cristo, o Bom Pastor, o conte entre as suas ovelhas.” A voz do Padre, recitando o Ritual das Exéquias por este lobo-feito-ovelha absolvido pelos rigores da morte, ecoa nas paredes frias sem que ninguém lhe preste atenção. As mãos trémulas cobrem-me o rosto com um pano branco como se eu fosse um presente-surpresa para oferecer ao-de-lá-de-cima, que nunca me atendeu os pedidos. Há-de apanhar um susto quando me vir com esta marca de batom na testa. “Por onde andaste? Na má vida, entregue às devassidões do Satã?”, indagará, rodeado de anjinhos rechonchudos, sem sexo nem malícia.

Adeus, amigos. Lá vem a tampa. Até que enfim arranjaram tempo para me visitar. Desculpem não ter bebidas para oferecer. Vou ter saudades vossas, grandes cabrões. Que bom ver-vos todos. Até o sacana do Artur. Toma conta da minha Alzirinha e cuidado aí com a velha, que já matou este com o marisco estragado.

O arcano Cinco de Copas recorda-nos que somos todos cadáveres adiados, já o dizia Ricardo Reis, pleno de lucidez. Vamos morrendo um pouco a cada golpe do destino, e às vezes damos por nós a caminhar como os vivos, a trabalhar como eles, e até poderíamos sentir-nos como os vivos, não fosse a pedra de gelo que nos entorpece o coração para nos evadirmos de certas agruras que o acometem.

No entanto, em boa verdade vos digo, nunca nos encontramos tão agarrados à vida como quando vemos a morte com os próprios olhos e percebemos que afinal estávamos vivos — mas não tínhamos dado conta.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1635
foto: AmberAvalona, licença CC0

O fio do tempo


De braços abertos à largura do horizonte, procuro o equilíbrio apesar das línguas sibilantes de vento que me lambem o corpo, ora amparando, ora levando-me a oscilar. Caminho descalça sobre o fio retesado que une o nascimento à morte.

Os primeiros passos, ansiosos e apressados, frustravam-se pela lentidão com que o fio do tempo se desenrolava à minha frente iludido de eternidade. Quando julguei que tinha chegado a um ponto de segurança, sentei-me no fio e deixei-me ficar como um pássaro pousado nos cabos que unem os postes de electricidade — mas o fio do tempo estagnou e os meus pés arrefeceram.

Retomei a caminhada, passando por labirínticos enleios, nós apertados e laços desfeitos. O ritmo da passada abrandou, contudo, o fio do tempo passou a fugir-me debaixo dos pés como os riscos da auto-estrada. Quanto mais ele me foge, mais devagar caminho — numa vã tentativa de levar a melhor ao tempo.

A urgência e a curiosidade foram superadas pela consciência da tesoura afiada segura por mãos velhas e ossudas que em misteriosa hora cortará a outra ponta do fio sem piedade, tornando insignificantes todos os enleios, todos os laços, todos os nós. Nada disto importa.

Olho em frente para não cair. Os pés tremem, o vento uiva, mas olho em frente, ainda que de olhos embaciados como a escotilha de um navio sovado pelas ondas do mar. Não posso cair. Não posso. Não posso cair, porque se caio, não páro de cair mais fundo do que o chão, mais fundo do que a Terra, mais fundo do que os infernos dantescos até ser engolida por um buraco negro e cessar de existir.

O que se passa é que perdi uma amiga. A implacável tesoura, sem aviso prévio, cortou-lhe o fio da vida, levando-a inesperadamente a empreender a derradeira viagem rumo à imensidão etérea. O meu mundo ficou subitamente mais pobre, mais baço, mais cinzento-tabaco. A rede de segurança que me sustenta ficou com um buraco impossível de remendar. E agora, se eu cair, o que é que me agarra?

Esta semana, o arcano 2 de Copas leva-nos a reflectir sobre as ligações que estabelecemos uns com os outros, onde, como dizia a canção de Rui Veloso, “muito mais é o que nos une do que aquilo que nos separa”.

Nem o fio do tempo, nem a gélida tesoura conseguirão apartar-nos daqueles que amamos. Apenas a falta de amor o poderá alguma vez fazer. E que esse nunca nos falhe. Que o consigamos demonstrar a tempo, por palavras e actos, enquanto o fio ainda está inteiro. Até sempre, Ana Paula Boturão (1963-2017). Obrigada por tudo.

Hazel
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1633
Foto: detapo, licença CC0

A Cereja no Topo

Os meus olhos fogem-lhe para as cuecas; procuro não olhar, mas é inevitável. Vocês também olhavam se aqui estivessem. Fotografo em palavras, correndo o risco de vos apresentar uma foto tremida: barba esparsamente semeada, cabelo rebelde a bater nos ombros, lábios trocistas.

Um Jim Morrison do século XXI, de pernas longas e magras, calças justas a cortar a circulação sanguínea, negligentemente caídas como se acabasse de sair da casa-de-banho e se tivesse esquecido de puxá-las para cima (a minha avó também andava assim por vezes, como estes mancebos de agora, mas devido à demência e não à moda).

‘Senha R65’, pisca o monitor pendurado junto ao tecto, para onde todas as cabeças se viram como cágados a espreitar de fora da água cada vez que o sinal sonoro dispara. Levanta-se o jovem Morrison, caminhando com atitude felina, apesar dos passos de estreita amplitude, presos pelo gancho das calças ao nível dos joelhos.

Todos os olhos entediados pela espera se lhe repousam nas nádegas sem que isso lhe cause qualquer beliscão. Seguro e confiante, exibe com desfaçatez o arredondado nalgal contornado pelas cuecas de elástico puído, com padrão de xadrez azul-turquesa-toalha-de-cozinha-mediterrânica.

Assina aqui, rabisca ali, molha o dedo na tinta, carimba este papel, depois aquele, compõe o cabelo para a foto. Vamos medir a altura, diz a senhora do Registo Civil na voz monocórdica e computorizada de quem repete as mesmas frases há mais de vinte anos. Algo muda subitamente nele. Há ali um torpor, uma emoção renovada.

Encosta-se à parede onde está a régua e apercebo-me dos espantosos ténis de sola de porta-aviões. Estica-se o máximo que pode levantando discretamente os calcanhares do chão, como quem não quer a coisa, enquanto sorri com a satisfação matreira de quem acaba de enganar o sistema em bicos-de-pés e cuecas de fora — debaixo das barbas de todos. Bem somado, deve ter ganho mais uns sete centímetros de altura. Para ele, um metro e oitenta não devia ser suficiente.

‘Senha R66’, fecha-se um jornal e levanta-se um homem baixo e compenetrado. Os mesmos procedimentos, assina, molha o dedo, fotografa, mede. A régua desce a pique até cerca de metade da altura para apurar a altura do senhor, que levava sapatos rasos e tinha os calcanhares pacificamente assentes.

O arcano Nove de Copas leva-nos a reflectir sobre a necessidade de estar grato e de valorizar o que temos. Querer sempre mais é estar desfasado do aqui e do agora, com a atenção focada um passo à frente do espaço que realmente ocupamos, num estado de carência e de gulodice insaciável; mesmo que nos oferecessem aquele pedaço de bolo que julgamos precisar, seria uma grande frustração se não houvesse uma cereja no topo — embora saibamos que um bolo não deixa de ser um bolo ainda que não tenha a cereja vermelha.

‘R67’, chegou a minha vez. Capricho na assinatura. Um metro e sessenta e nove (sem intenções maliciosas, garanto-vos por tudo o que há de mais sagrado). As sandálias rasas também não se afastam um milímetro do chão.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1630
imagem vectorial, licença CC0

“Ponha esse Coração a Funcionar”


Cabelo preto curtinho e fino como pêlos de pincel-de-aguarelas, a previsível nuvem de perfume antigo e os envelopes dos exames médicos debaixo das mãos trémulas e enrugadas. Os seus olhos acinzentados e pequeninos de rato observavam-me com agudeza perscrutando o que levaria uma sirigaita da minha idade, coradinha, bem-disposta e luzidia, sem estar grávida, ao centro de saúde tirar o lugar a quem precisa.

Baixei a cabeça para o meu livro. A senhora do cabelo de pincel-de-aguarelas manteve o olhar na mesma direcção, mas sem nada ver, como se o tempo — o seu tempo — tivesse feito uma breve pausa para retemperar forças.

Oiço finalmente o meu nome ser chamado numa voz clínica e fria como o metal da agulha de uma seringa (porque será que as enfermeiras têm sempre aquele tom incisivo que nos antecipa algo doloroso?).

Levanto-me atabalhoadamente, deixando cair a carteira para o chão. Espalham-se os cartões do supermercado, da biblioteca, do combustível e talões nem-sei-de-quê, que recolho à pressa para não fazer esperar o Senhor-Doutor.

Apresso o passo, entro educadamente no consultório, fecho a porta atrás de mim e cumprimento o médico com um aperto de mão onde as minhas falanges são comprimidas com vigor. O meu médico tem sempre aquela atitude salutar e vitaminada, de quem foi criado a tomar óleo-de-fígado-de-bacalhau todas as manhãs.

De olhos franzidos postos no computador e óculos na ponta do nariz, consulta eficaz e rapidamente o meu histórico. Entrego-lhe os resultados dos exames que me tinha mandado fazer e aguardo o veredicto com dramatismo, como se toda a minha vida dependesse daquele momento. Empurra os óculos para o topo da cana do nariz e afasta os papéis para ver melhor ao longe:

— Ponha esse coração a funcionar — lançou o médico na sua voz de médico, clara e firme, enquanto pousava o electrocardiograma.

Por segundos, a romântica idiota em mim ficou embevecida a pensar que ele queria dizer que tenho de amar mais. Ah que lindo. Ainda esbocei um sorriso pateta, que logo procurei disfarçar quando realizei que, afinal, o que se pretende é que eu faça mais exercício.

Saí do consultório com asas nos pés, tamanha a satisfação. Ainda não é desta que se livram de mim. A senhora dos olhinhos de rato apanhou-me a rir sozinha pelo corredor. Penso que achou que o meu problema seria de ordem mental, o que ainda me fez rir mais. É uma injustiça que o riso seja socialmente aceite apenas se estivermos acompanhados e que sejamos olhados com descrédito quando nos apanham a rir sozinhos.

O arcano Seis de Copas inspira-nos a reencontrar a leveza e a capacidade de manter o sentido de humor em todas as circunstâncias. Para quê tanta seriedade.
O riso cura. Se não curar, alivia. Se não aliviar, tomem óleo-de-fígado-de-bacalhau.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1623
foto: voltamax, licença CC0

A Mulher mais Odiada de Portugal


ELA CANTA “Hoje Maria Leal aqui só p’ra ti”, mas o país, horrorizado, diz que dispensa. Ninguém a quer ver, no entanto, ninguém consegue deixar de olhar para ela. Os espectáculos onde actua têm lotação esgotada em todo o país e a sua agenda está mais cheia que a do Marcelo.

Antigamente, antes da miudagem ter passado a ver o mundo através dos écrans, quando se juntavam na rua, havia um jogo chamado “corredor”. Miúdos e miúdas alinhavam-se ombros com ombros formando duas filas paralelas. Depois havia sempre um desgraçado que tinha de passar no meio e levava calduços de todos. Até fervia.

Lembro-me de ter jogado uma vez, e fiquei nos que davam calduços (entre dar e levar, sempre é melhor dar). Hoje, já adultos, vejo que o jogo continua à escala nacional; quem passa no corredor é a Maria Leal, a levar forte e feio de todos. 

Elisabete Maria Pereira Garcia Rodrigues d'Eça Leal ou, como é conhecida, Maria Leal, é uma má cantora, não tem um discurso eloquente, nem possui a beleza da Miss Universo. A ausência de talento para cantar e dançar é directamente proporcional à sua falta de consciência disso, o que não é necessariamente negativo. 

A ML tinha o sonho de se tornar uma cantora famosa, sem a menor noção de estar artisticamente despreparada. Por não o saber, lançou-se ao sonho. E conseguiu. Não é uma questão de se ser bom, mas de se acreditar que é.

Os outros riem-se, gozam e insultam-na continuamente, mas ela não vacila. O talento da Maria é a perseverança: tem sido uma campeã olímpica de resistência. Se fosse um quadro, seria uma daquelas telas indecifráveis com um borrão de tinta que todos acham feio, mas tem que se respeitar mesmo não o compreendendo — porque “é arte”.

O problema não é a sua falta de jeito para cantar, mas a nossa falta de respeito. Ela é uma artista sofrível, mas não sabe. E nós somos um país de fanfarrões, mas não sabemos. 

É espantoso o ódio que lhe é dirigido massivamente sem que tenha causado qualquer tipo de dano a ninguém, excepto auditivo (desculpem, não resisti à piadola, foi Satanás que se apossou de mim agora, pois ainda sou um ser humano em processo de evolução).

O Valete de Copas comete a ousadia de afirmar “Eu sou Maria Leal, aqui só pr’a ti”, em homenagem à mulher mais odiada do burgo, inspirando-nos a nunca desistir dos nossos sonhos, digam-nos aquilo que disserem. E a ver a nossa realidade com amor, ainda que o amor possa ser uma ilusão. 

Antes passar uma vida feliz na ilusão de que se é amado, que infeliz na fealdade do ódio, enfiado atrás de um computador a falar mal dos outros.

Ao fim e ao cabo, acho que gosto da Maria Leal. Quer isto dizer, detesto ouvi-la cantar, mas admiro o que ela representa. Porque os sem-talento também merecem um lugar ao Sol. 

Arriscando o meu próprio pescoço a levar com alguns calduços por marchar em descompasso dos restantes, atrevo-me a dizer: ela é que está certa

Não sei quanto a vós, mas a mim a mulher do “entroncamento sem fim” ensinou que não se desiste, nem se baixa a cabeça, mesmo que tenhamos sobre ela a espada de Dâmocles suspensa por um fio prestes a rebentar.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1618
Foto: facebook de Maria Leal

As Palavras-Cruzadas Fazem-se até ao Fim


Junto ao lago, o dia amanhecia em tons de azul-aguarela pincelados aqui e ali a dourado pela copa das árvores que começavam a perder as folhas. O cheiro a café invadia a casa sem pedir licença e o rádio tocava baixinho para não se sobrepôr às boas-novas trazidas pelos pássaros.

Na mesa de madeira velha, o jornal ficava aberto na página das palavras-cruzadas, que eram preenchidas com silenciosa satisfação pela filha mais nova depois de todos terem lido os crimes, as falcatruas, o horóscopo e as últimas do desporto.

O aroma antiquado a after-shave lavanda impregnava subtilmente as páginas recém-folheadas pelo homem de olhos amendoados e tristes, camisa xadrez e um pedaço de papel higiénico colado no queixo para estancar o corte da barba feita à pressa.

Cada um cumpria a sua rotina sem reparar nela, perdido dentro de si e desligado dos outros. Abílio sonhava com um milagre, uma lotaria que lhe permitisse não ter mais de trabalhar, para a qual nunca comprava bilhete, por achar um desperdício de dinheiro. Anotava contas mirabolantes num caderno seboso, onde destinava a meia dúzia de pessoas de quem gostava uma parte da fortuna imaginária, e escondia-o com vergonha no fundo da gaveta das peúgas e camisolas interiores.

Um dia, Josefa, a mulher, à procura de meias gastas para passajar com um ovo de madeira e muita paciência, encontrou o caderno. Não percebendo os apontamentos codificados e receosa de admitir que os tinha lido às escondidas, atafulhou as meias na gaveta e disparou aflita para casa da irmã, pensando que o marido tinha contraído uma grande dívida e a andava a enganar.

A irmã, que sempre fora distante e ciumenta, comprazeu-se intimamente da sua dor e deixou-a sentada sozinha, lavada em lágrimas que jorravam em torrentes como se o próprio lago escoasse através dos seus olhos.

O lago espelhado acabou por desaparecer com a construção de uma auto-estrada que viria a ser o começo do fim. Abílio deixou de comprar o jornal. O mundo lá fora cessou de existir quando a reforma antecipada chegou como um presente envenenado enquanto cuidava de Josefa, que ficou doente e se preparava para a derradeira viagem.

A auto-estrada, criada para facilitar as deslocações, tornou-as demasiado rápidas para o bem de todos. Aos poucos, cada um foi embora para nunca mais voltar à casa do lago, que passou a ser uma casa vazia e assombrada. O jornal ficou para sempre aberto sobre a mesa do pequeno-almoço na página das palavras-cruzadas. Faltava apenas uma palavra para completar o quadro. Linha dez, horizontal. Quatro letras. Sinónimo de sentimento, começava por A, acabava em R. Nunca foi preenchido.

Tinham sido, sem saber, quase felizes, à sua maneira remendada e remediada. Incapazes de preencher o vazio que lhes atormentava silenciosamente a alma, viviam com meio coração apenas, e aquilo que deram uns aos outros foi a metade vazia, quando poderiam ter dado a metade boa.

O arcano Nove de Copas surge como um velho conselheiro que pergunta, em voz sábia e paciente, se alguma vez estaremos realmente satisfeitos. Não espera resposta. Vira as costas e caminha rumo ao pôr do Sol, deixando-nos entregues ao poço sem fundo de onde brotam os desejos que nos atropelam a saciedade. Queremos tanto ver o poço transbordar, que desvalorizamos os copos de água que nos trazem — porque achamos pouco. E a sede nunca passa.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1603
foto: Matti Decaux

Amar o Amor


Calem-se os violinos sensíveis e agudos acariciados por longos dedos magros, hábeis e draculinos que tangem sonhadores os deslumbres do romantismo. Poupe-se a beleza perfumada das rosas vermelhas ao sacrifício acutilante do amor que, de tesoura em riste, se sobrepõe egoisticamente aos desígnios da Natureza.

Repouse placidamente a caneta de aparo do poeta sôfrego sobre as folhas de papel branco, virgens de tinta, imaculadas de palavras vãs. Arrumem-se os sapatos de dança de camurça azul, roçados uns nos outros em promessas, insinuações, avanços e recuos de arrojo libertino.

Creio que o amor está gasto. Tudo o que houvesse a ser escrito sobre o amor, já foi amplamente redigido em prosa, poesia, hieróglifos, sinais de fumo, emojis e corações entalhados a navalha nos troncos das árvores.

Esgotaram-se as demonstrações insensatas, insanas e até mesmo ilegais de tão grande sentimento que nem já o mundo tem espaço que chegue para albergá-lo; estendendo-se para além da estratosfera, inundando miríades de estrelas salpicadas no céu – as mesmas para onde lançamos desejos secretos nas noites quentes de Verão. 

Já se explorou todas as definições do amor para explicá-lo àqueles cuja euforia apaixonada deseja elucidar, entretecendo palavras, ideias, fantasias e desvarios. Nada mais há a dizer, a demonstrar, a provar, a classificar. O amor está dito. E feito. Catalogado, esquadrinhado, analisado micro e macroscopicamente. Tudo o mais é-nos redundante e indutor de náusea por excesso de sacarose.

Das brumas misteriosas do acaso, surge o arcano Ás de Copas, trazendo a ambiciosa missão de inspirar-nos a encontrar novas formas de amar e de viver o amor. Pelos mamilos de Afrodite!, exclamei, justificadamente, ao vê-la.

Perguntei ao Amor que poderia eu, comum mortal que não descende de Fernando Pessoa, nem tão-pouco de poeta algum, escrever que pudesse inspirar os bons olhos que lêem estas palavras a amar mais e melhor. Estupefacta pela assertividade da resposta, ei-la: o Amor manda dizer que está cansado de andar nas bocas do mundo — e longe dos corações.

Que se ame e mais nada. Sem um poema polvilhado de açúcar-pilé, sem uma flor arrancada e embrulhada em papel celofane cor-de-rosa com um laçarote, sem uma melodia gulosa e sedutora a acompanhar, ou a lascívia de um passo de dança a insinuar volúpias por desvelar. Simplesmente, ame-se. Pois o amor é estrada que se percorre e não veículo que se conduz.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1600

Saber as linhas com que se cose


As mulheres que costumam coser roupa são mais corajosas que as outras. Pelas suas mãos, nascem caminhos, rectas, curvas e contracurvas feitos de linhas de várias cores e espessuras, ora a direito, ora em ziguezague, ora em ponto caseado. Fazem e desfazem, cortam, cosem, descosem, medem e alinhavam. Voltam a coser, mas ainda não está bem. Às vezes, desmanchar leva mais tempo que fazer. 

Os pensamentos voam soltos ao compasso da máquina de costura, deixando um rasto feito de pontos que mergulham e emergem no tecido como um nadador olímpico que nunca mais chega ao outro lado da piscina. Cada ponto guarda a memória de um pensamento que não foi dito por palavras, mas por linhas. Cada bainha retém um suspiro de cansaço.

Creio que ninguém conhece tão bem o sabor da frustração e a enfrenta com tamanha perseverança quanto as costureiras. Desistir é extremamente amargo. Atormenta-nos a ideia de ter de abandonar um caminho para onde nos dirigíamos a passos largos achando que se estava na direcção certa. As costureiras fazem-no repetidamente, com uma paciência heróica que apenas elas possuem.

Nunca fiz uma peça de roupa para mim; não quis aprender a coser a sério porque sempre soube que isso implicaria errar e desfazer mais vezes do que aquelas que nasci preparada para aceitar fazer.

Como o destino é matreiro e travesso, acabei por me ver a coser, não com linhas, mas com palavras que serpenteiam a carvão ao longo das folhas branco-amareladas dos meus cadernos velhos, como alinhavos antes de uma costura, que depois transcrevo para o computador. Apago mais frases do que aquelas que ficam escritas. Em cada sílaba, um ponto rematado no tecido da vida. Escrevo, apago e torno a escrever até me parecer melhor, como uma colcha de Penélope que nunca é terminada.

O arcano Oito de Copas mostra-nos que desistir nem sempre é andar para trás; porque também o retrocesso, que enfrentamos virados do avesso com as costuras e cicatrizes expostas, faz parte dos planos. Afinal, de que vale insistir na confecção de uma peça de roupa que nunca nos irá servir? 

Desistir não é fracassar e está reservado a quem possui a coragem de desmanchar para aprimorar. Fracassar seria recusar-nos a mudar de direcção quando temos uma parede e não uma porta à nossa frente; quando tentamos enfiar uma camisola do tamanho M, sabendo que a nossa medida é L.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1597
foto: cortesia de Zélia Évora

Amor de Amigo

A amizade é uma espécie de amor onde não há tensão sexual. Apaixonamo-nos pela pessoa, deliciamo-nos com as suas piadas, até mesmo quando não têm assim tanta piada, estamos lá para apoiar e para sofrer junto nos momentos difíceis, brindamos à vida quando esta é generosa para com o nosso amigo. Partilhamos segredos, conselhos, fragilidades, medos, afectos.

Entregamo-nos de corpo inteiro, alma e coração escancarados, deixando apenas os genitais e pouco mais de fora da equação.

Assume-se, sem precisar de se lhe fazer referência, um compromisso de afecto, honestidade, lealdade e dedicação mútuos.

Quando desaparece um destes quatro alicerces que sustentam as paredes da casa que abriga os nossos sentimentos, esta degrada-se até acabar por ruir, causando uma dor enorme e prolongada. A perda de um amor pode vir a curar-se e depois voltamos a amar e a desejar alguém.

Contudo, a perda de um amigo é irreparável. O vazio que fica nunca mais volta a ser preenchido, por muitos novos amigos que venhamos a fazer.

Confesso, por isso, o meu receio de fazer novos amigos. Assumo a minha cobardia e fragilidade. Porque gostar de alguém é confiar, mostrar-lhe o nosso mapa interno onde, para além dos frondosos jardins perfumados, também existem estradas mal sinalizadas habitadas pelos fantasmas de amigos que deixaram de o ser, precipícios de memórias sem futuro e áreas em construção onde o perigo de queda é intenso - e não se usa capacete ou cinto de segurança.

Não obstante, gosto de conhecer pessoas, de observá-las. Fascinam-me as suas particularidades, caprichos e preferências. Comovem-me as mágoas. Desejo-lhes bem. Emociono-me quando sinto que também me querem bem. E, inevitavelmente, as barreiras começam a desaparecer, os laços a estreitar-se, e a amizade surge no horizonte cálida e delicada como o nascer do dia.

Nasce espontaneamente - não porque alguém decidiu. Apaixono-me novamente e tomo consciência de que a fragilidade nos leva à injustiça, por vezes. Reconheço que no seio da amizade encontrei confortos e alegrias que deram novo sentido à minha existência. Porque um amigo às vezes é mais do que família. É uma extensão do melhor que temos em nós.

O arcano Três de Copas leva-nos a reflectir sobre a necessidade de alimentar a amizade e de celebrá-la, de dar o melhor de nós sem esperar contrapartidas. Porque, se a família é feita de laços de sangue e de obrigação, os laços entre amigos unem-se pelo afecto, afinidade e cumplicidade. Façamos uma pausa para saborear o lado mais doce da vida, junto de quem nos quer bem, seja ele do nosso sangue, ou não, seja humano ou animal. O mundo que espere um pouco - enquanto o melhoramos.

Hazel

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição de 30 Junho
Imagem: Anne Taintor

O Tesouro do Pirata


Conheci certo indivíduo a quem faltava um dente na parte da frente do maxilar inferior. Alto, gordo e de farta barba negra, qual pirata Blackbeard, era uma figura imponente que não passava despercebida. Pelo buraco do seu sorriso desdentado, discorriam os mais escabrosos exemplares do vernáculo português com o mesmo direito e tranquilidade de qualquer outra palavra do léxico lusitano.

Nunca quis tapar com um dente postiço a janela que espreitava atrevida do seu sorriso barbudo, porque se encontrava sempre ocupada por um cachimbo fumegante cuja haste tinha a largura exacta do dente que lhe faltava. Grande, bruto, de discurso ruidoso e detentor de toda a discografia do músico grego Vangelis, este homem era como uma criança gigante. Foi uma das pessoas mais felizes e contagiantes que conheci.

O pirata Barba Negra, vamos chamar-lhe assim, era como um pirata dos tempos modernos. O mundo era, para ele, um enorme oceano a explorar com a insensatez que caracteriza aqueles que acreditam piamente na existência de um tesouro à espera em cada esquina, em cada encontro, em cada fim de tarde à volta de uma mesa cheia de amigos onde se ergue o cálice e brinda por tudo e por nada. E não é que havia mesmo?

Tinha modos grosseiros, mas era genuíno. Amava o ar que respirava, os animais, a música e as pessoas, que abraçava com tamanha força que tinha a reputação de alinhar as escolioses mais retorcidas.

De apetite voraz pela comida e pela vida, não perdia tempo com canapés e outras pequenezas. Os seus olhos viajavam para lá do horizonte, onde alcança a visão daqueles que vivem num estado de constante deslumbramento pelo mundo e o redescobrem a cada passo que dão, mesmo que o caminho percorrido todos os dias seja sempre igual. Era de lá, daquele lugar onde as ondas do mar beijavam o convés do navio e as sereias nos encantam os sentidos, que ele falava e levava os interlocutores numa viagem épica por lugares-comuns que se tornavam fascinantes pela forma apaixonada como os apontava.

Tomavam-no por um tolo, mas ele era aquele que tinha o dom do amor. O amor que flui simplesmente, como uma taça que transborda. Sem qualquer intenção romântica, que as delicadezas não faziam o seu género.

A distância dos anos revelou-me o segredo deste pirata de barba negra, bruto e feliz: todos os dias, ele apaixonava-se de novo pela vida e por todos aqueles que faziam parte dela - creio que, inadvertidamente, acabei de roubar o tesouro do pirata e partilhá-lo com o mundo. Felizmente, a fonte é inesgotável.

O arcano Ás de Copas é um bilhete para embarcar nesta viagem pelo mar do amor, da gratidão por estarmos vivos, e do permanente enamoramento por tudo o que nos rodeia. Ahoy! Mar à vista!

Hazel
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição de 18 Fevereiro

De coração nas mãos

Às vezes, o coração apanha-nos desprevenidos e salta para fora do peito sem que nada possamos fazer para contê-lo, como se, cansado de estar escondido e confinado à solidão da caixa torácica, reclamasse o reconhecimento da sua existência.

“Os pulmões têm-se um ao outro para conversar, mas eu apenas te tenho a ti. 
Como me tens ignorado, resolvi sair para falar contigo.” 

Quanto mais nos esforçamos por acalmá-lo, mais exigente e indisciplinado ele se revela, qual tsunami que galga muros, paredes, edifícios, e leva tudo à frente sem pedir licença.


Procuramos simular a normalidade das pessoas auto-controladas fazendo as actividades rotineiras de todos os dias: vestimo-nos como sempre, mas colocamos a roupa do avesso, de fragilidades expostas, perfumamos os nervos à flor da pele e damos um nó no cachecol tão apertado como o que sentimos na garganta. E saímos assim, de cara lavada para enfrentar um mundo que se tornou demasiado complicado e cheio de alíneas e ressalvas para alguém que apenas queria ser feliz.

Sentamo-nos ao volante do carro, colocamos o cinto de segurança, e fazemos o mesmo caminho de sempre, já em piloto-automático. É então que o coração, sentado no banco do lado, de braço de fora e com um olhar impaciente, nos lança a primeira pergunta, que sai como um soco certeiro no estômago:

“Será que vai ser sempre assim, para o resto da vida? É esta a vida que tu queres?” 

Há algum tempo que nos sentíamos à deriva, de um lado os sonhos, do outro as obrigações. E no meio, a nossa pequena jangada cheia de furos, que deixa entrar mais água do que deveria. Esta indagação proveniente do nosso órgão cardíaco atirou-nos para um canto como um pedaço de papel amassado. Em cheio.

E agora, o que fazer? O coração, depois de sair do peito, é como uma criança impertinente. Não nos vai deixar nem se cala enquanto não lhe respondermos às perguntas e explicarmos porque é que não lhe estamos a proporcionar aquilo que deseja. E ai de nós se o contrariamos ainda mais, que ele tem um protocolo com os nossos olhos, e coloca-os a verter água quando menos desejamos, em protesto.

Não há como enganar os nossos sentimentos e fugir às suas manifestações. A única forma de repôr a ordem e colocar o coração de volta no peito, sereno e compassado, é escutá-lo sem interferências externas, e aceitar que a sua vontade é soberana

Quando o seu desejo é genuíno e proveniente do verdadeiro amor, o Universo acabará por se tornar seu cúmplice. Temos de acreditar que isto é verdade. 

Enquanto acreditarmos, os sonhos e o romantismo ainda vivem. 
Enquanto acreditarmos, ainda é possível realizarmos...

Hazel
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, 11 Fevereiro