Crónica de um Funeral Vivido pelo Morto


A maçaneta da porta gira devagarinho e todos dão um passo atrás. Mal respiram, os cretinos, com medo que o camarada aqui da sala ao lado se tenha levantado do caixão. Afinal era o padre que tinha ido à casa-de-banho contígua, deixando-os à espera enquanto foi enviar para inglório e fétido destino final o almoço feito pela sua discreta afilhada.

Nem lavou as mãos e agora está a dar um passou-bem ao artolas do Artur. Bem feito, que esse caloteiro ficou a dever-me dinheiro. Agora é que vejo bem daqui de cima, que grande calva de Santo António tem este magano. Vinte anos de amizade e nunca tinha reparado; o tipo é um homem grande — embora não seja grande homem.

Lá vem a minha sogra, toda de preto-corvo por fora e laranja-euforia por dentro, directa ao esquife como uma seta para me pespegar os lábios franzidos na testa fria-e-húmida da saliva de tantos beijos carregados de obrigação e fingimento.

Rais’parta a velha, deixou-me sujo de batom. Oh Alzirinha, anda cá e limpa-me a testa, não me deixes ir assim para a eternidade. Bem lhe ponho a mão no ombro, mas ela aconchega o casaco arrepiada com as correntes-de-ar e não me vê. Coitadinha, com a camada de sedativos que tem em cima, se olhar para o que resta de mim até me deve confundir com o forro de veludo.

Vou puxar os pés ao Artur esta noite, quando se for deitar. Que desplante, a deitar os mirones à minha Alzirinha, cheio de gulodice. Não só lhe puxo os pés como lhe dou um esticão no fecho-éclair das calças para lhe entalar o farfalho, conta com isso, pá. Cá está o Barata, bom homem. Obrigado pelas rosas brancas, amigo. Um espinho crava-se-me nas mãos, mas não sinto nada.

“Cristo, o Bom Pastor, o conte entre as suas ovelhas.” A voz do Padre, recitando o Ritual das Exéquias por este lobo-feito-ovelha absolvido pelos rigores da morte, ecoa nas paredes frias sem que ninguém lhe preste atenção. As mãos trémulas cobrem-me o rosto com um pano branco como se eu fosse um presente-surpresa para oferecer ao-de-lá-de-cima, que nunca me atendeu os pedidos. Há-de apanhar um susto quando me vir com esta marca de batom na testa. “Por onde andaste? Na má vida, entregue às devassidões do Satã?”, indagará, rodeado de anjinhos rechonchudos, sem sexo nem malícia.

Adeus, amigos. Lá vem a tampa. Até que enfim arranjaram tempo para me visitar. Desculpem não ter bebidas para oferecer. Vou ter saudades vossas, grandes cabrões. Que bom ver-vos todos. Até o sacana do Artur. Toma conta da minha Alzirinha e cuidado aí com a velha, que já matou este com o marisco estragado.

O arcano Cinco de Copas recorda-nos que somos todos cadáveres adiados, já o dizia Ricardo Reis, pleno de lucidez. Vamos morrendo um pouco a cada golpe do destino, e às vezes damos por nós a caminhar como os vivos, a trabalhar como eles, e até poderíamos sentir-nos como os vivos, não fosse a pedra de gelo que nos entorpece o coração para nos evadirmos de certas agruras que o acometem.

No entanto, em boa verdade vos digo, nunca nos encontramos tão agarrados à vida como quando vemos a morte com os próprios olhos e percebemos que afinal estávamos vivos — mas não tínhamos dado conta.

Hazel
Consultas em Cascais, Oeiras e online

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1635
foto: AmberAvalona, licença CC0

Comer em Silêncio


O silêncio, observado por comunidades religiosas no mundo inteiro, tem por finalidade concentrar toda a atenção no acto da alimentação, sem dispersão de energia.

Assim, a digestão requer uma menor actividade na área do plexo solar, tendo como resultado uma considerável economia energética e nervosa de que os exercícios contemplativos e meditativos precisam para que sejam genuinamente frutíferos.

Shhh,

Hazel
Foto: worak, licença CC2.0

O fio do tempo


De braços abertos à largura do horizonte, procuro o equilíbrio apesar das línguas sibilantes de vento que me lambem o corpo, ora amparando, ora levando-me a oscilar. Caminho descalça sobre o fio retesado que une o nascimento à morte.

Os primeiros passos, ansiosos e apressados, frustravam-se pela lentidão com que o fio do tempo se desenrolava à minha frente iludido de eternidade. Quando julguei que tinha chegado a um ponto de segurança, sentei-me no fio e deixei-me ficar como um pássaro pousado nos cabos que unem os postes de electricidade — mas o fio do tempo estagnou e os meus pés arrefeceram.

Retomei a caminhada, passando por labirínticos enleios, nós apertados e laços desfeitos. O ritmo da passada abrandou, contudo, o fio do tempo passou a fugir-me debaixo dos pés como os riscos da auto-estrada. Quanto mais ele me foge, mais devagar caminho — numa vã tentativa de levar a melhor ao tempo.

A urgência e a curiosidade foram superadas pela consciência da tesoura afiada segura por mãos velhas e ossudas que em misteriosa hora cortará a outra ponta do fio sem piedade, tornando insignificantes todos os enleios, todos os laços, todos os nós. Nada disto importa.

Olho em frente para não cair. Os pés tremem, o vento uiva, mas olho em frente, ainda que de olhos embaciados como a escotilha de um navio sovado pelas ondas do mar. Não posso cair. Não posso. Não posso cair, porque se caio, não páro de cair mais fundo do que o chão, mais fundo do que a Terra, mais fundo do que os infernos dantescos até ser engolida por um buraco negro e cessar de existir.

O que se passa é que perdi uma amiga. A implacável tesoura, sem aviso prévio, cortou-lhe o fio da vida, levando-a inesperadamente a empreender a derradeira viagem rumo à imensidão etérea. O meu mundo ficou subitamente mais pobre, mais baço, mais cinzento-tabaco. A rede de segurança que me sustenta ficou com um buraco impossível de remendar. E agora, se eu cair, o que é que me agarra?

Esta semana, o arcano 2 de Copas leva-nos a reflectir sobre as ligações que estabelecemos uns com os outros, onde, como dizia a canção de Rui Veloso, “muito mais é o que nos une do que aquilo que nos separa”.

Nem o fio do tempo, nem a gélida tesoura conseguirão apartar-nos daqueles que amamos. Apenas a falta de amor o poderá alguma vez fazer. E que esse nunca nos falhe. Que o consigamos demonstrar a tempo, por palavras e actos, enquanto o fio ainda está inteiro. Até sempre, Ana Paula Boturão (1963-2017). Obrigada por tudo.

Hazel
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1633
Foto: detapo, licença CC0

Crime Organizado Entre Panelas e Peúgas


HÁ UMA FALHA entre dois azulejos ao lado do fogão por onde vi deslizar silenciosamente um tentáculo da Máfia siciliana. A minha cafeteira é uma ladra chupista. Coloco-lhe a água em baixo, o café no depósito central, enrosco a parte de cima e acendo o lume. A gangster-octogonal colabora sem oferecer resistência, como uma boa-e-honesta cafeteira acima de qualquer suspeita.

A água ferve e sobe, percorrendo a secção onde se encontra o café, até chegar ao compartimento superior — dizem os vrais connaisseurs que o café é mais saboroso se subir em vez de descer, por algum misterioso motivo. No entanto, mal desligo o lume, ela — a velhaca — chupa o café de volta e fica com ele no andar de baixo.

Não será pela necessidade de beber o meu café-levanta-mortos que a cafeteira-chupista o rouba, mas certamente porque a Cosa Nostra chega a todo o lado. Uma pouca-vergonha pegada com sotaque italiano.

Mais ao fundo da cozinha, insuspeita junto à janela, encontra-se a sua comparsa, a máquina de lavar roupa. Essa é mais imprevisível na metodologia criminosa.

BREVE RECONSTITUIÇÃO DO ÚLTIMO CRIME OCORRIDO:

Dirigiu-se esta vossa escriba com o alguidar da roupa para lavar na anca direita (toda a gente sabe que as ancas das mulheres servem para encaixar o alguidar), ajoelhou-se junto à máquina de lavar e colocou a roupa lá dentro: um pijama axadrezado, camisolas, calças de ganga, dois vestidos, toalhas de banho, todo um arsenal de cuecas pretas e, por fim, as cobiçadas peúgas. 

Lembro-me perfeitamente de ter colocado para lavar aquele par de meias castanho-escuras com desenhos que comprei "para o meu filho" (mas que acabaram por ficar para mim).

Regulo a máquina para o programa da roupa escura e vou aos meus afazeres. Quando a dissimulada mafiosa termina de lavar, retiro a roupa do seu interior e, com grande espanto, constato que apenas se encontrava uma (1!) das meias dos desenhos. 

Rodei o tambor, inspeccionei a roupa toda, mas a infeliz meia desapareceu como se nunca tivesse existido, deixando órfã a irmã gémea. O desaforo não acaba aqui: apareceram, não uma, nem duas, mas três outras meias pretas que não coloquei para lavar.

É do demo: roubou-me uma meia e deu-me outras três que tinha furtado noutras lavagens em troca, como quem permuta reféns menos valiosos por outros que interessam mais.

Estou profundamente indignada com a patifaria que se está a passar na minha cozinha. Tanto a cafeteira quanto a máquina de lavar são membros executantes da Máfia, essas filhas-da-mãe.

O arcano Cinco de Espadas surge-nos bruscamente como um gangster sem coração para nos levar as meias, o café e o bom-senso, numa batalha perdida onde ninguém é genuinamente vencedor.

Por vezes, o melhor é agir com distanciamento e não dar confiança à malandragem. Como vou fazendo com os atrevimentos dos mafiosos da cozinha: ignorar, evitar conflitos e conferir a roupa suja que se lava.

Hazel
Consultas em Cascais, Oeiras e online
Marcação: casa.claridade@gmail.com

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1632
Foto: andreas160578, licença CC0

Pista: 38.693449,-9.309771


Está decidido. Amanhã vou fugir. Já tenho a mala pronta. Caderno e lapiseira para algum rasgo de inspiração que possa surgir desavisadamente, uma muda de roupa para o caso de precisar de dormir fora, lápis preto para os olhos — terão de me perdoar a vaidade —, escova de dentes e desodorizante (pretendo ser uma fugitiva digna e asseadinha), e um telemóvel desligado. Acreditem em mim, vou fazê-lo. Dixit. Ninguém sabe; nem às paredes que me rodeiam confidenciei tão inusitado plano.
É segredo absoluto.

Não fujo à polícia. Tenho as contas em dia, actividade profissional legalizada, e apenas uma multa de estacionamento à espera de perdão divino, bem como o cartão de cidadão fora de prazo por casmurrice minha — porém, nada que justifique uma busca policial pela singela pessoa que vos escreve. Também não fujo de algum desgosto ou tristeza. Todos sabemos que a tristeza, quando quer apanhar alguém, agarra-o pelos artelhos e já nem à casa-de-banho o desgraçado consegue ir condignamente.

É do tempo que fujo, esse grande garganeiro. A mim não engana ele. Então, ainda há meia dúzia de dias nasci, até me lembro de estarem todos à espera que acabasse a “Gabriela, Cravo e Canela”, que estreava em Portugal, para fazerem o meu parto e agora, sem mais nem menos, diz que amanhã se completam quarenta anos que aqui estou? A areia da ampulheta gigante que mede a passagem do tempo anda certamente a ser desviada lá para as praias de São Pedro de Moel.

Chegados a este parágrafo, credes, amáveis leitores, que esta seja talvez uma crónica como as outras e que tudo isto é uma inocente metáfora. Contudo, sabem aqueles que me conhecem de perto que não gosto de fazer anos, é uma data que me causa sempre uma ansiedade irracional que me leva a desligar o telemóvel e a esconder-me em casa como quem se prepara para uma catástrofe nuclear. Por algum motivo, fico sempre assim no dia do meu aniversário, e esforço-me por fingir que estou contente para não ser uma bota-de-elástico desmancha-prazeres.

Amanhã vou estar mais velha, mais flácida, mais sábia e ajuizada (pelos vistos, nem ao menos isso!) e um ano mais perto da morte. Uhu, que emoção. Assim, este ano, porque a idade é um estatuto e só se faz quarenta anos uma vez, decidi celebrar o meu aniversário de forma a que nunca mais esqueça, mesmo que um dia o Alzheimer me apanhe desprevenida, e fazer algo que realmente me divirta: uma charada.

O meu bilhete de fuga é, justamente, esta crónica e a primeira pista para alguém me encontrar é a sequência de números que está no título. Quando encontrarem o local, terão de responder a um enigma (o enigma será entregue apenas directamente no local, e não por telefone). Quem responder correctamente, terá outra pista onde poderá ser dada a minha localização. Os corajosos que conseguirem encontrar-me, receberão de presente uma leitura de Tarot. Boa sorte! 😃

Hazel
Consultas em Cascais, Oeiras e online

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1631