DA MINHA BOCA abriu-se uma janela. As portadas de madeira pintadas de branco encostam-se-me ao de leve nas maçãs do rosto. Vejo o céu azul lá fora, de um azul tão livre, tão limpo como o mar das ilhas gregas onde as sereias namoram com os pescadores nas tardes de Sol sem fim. As cortinas serpenteiam ao vento em asas de gaivota.
Pousam os pardais nas portadas brancas e o seu chilrear entra sem pedir licença, transformando-se em crianças pequeninas e curiosas que exploram todos os lugares recônditos e secretos dentro da minha boca à procura de tesouros. Na sua inocência, não sabem que trazem aquilo que buscam —, a vida.
Batem as portas das gaiolas contra as paredes e alarga-se a janela que se me abriu na boca, rasgando paredes, tecidos, pele, carne, veias, mordaças, amarras. E voam em liberdade aves-do-paraíso de-todas-as-cores-que-o-mundo-já-viu e de muitas outras que ainda não foram inventadas.
Os cadernos que repousavam nas gavetas voam janela-fora como pássaros de asas abertas, que o vento folheia, lendo em assobios as histórias que lá escrevi. Rasgam-se as páginas e espalham-se em sementes pelos campos. As minhas palavras despontam em papoilas e malmequeres, em árvores de fruto, em flores de jasmim e ervas aromáticas e plantas medicinais.
VOAM de dentro da garganta as gaiolas agora vazias. Voa a poeira, o cotão, os fantasmas, as almas penadas, os demónios, os medos, os pesadelos. Liquefazem-se numa chuvada que sacia a sede da terra, que nutre e movimenta todos os influxos da Natureza e dos seres humanos.
Pela janela da minha boca entram as vozes frescas das pessoas que conversam na rua, o choro dos bebés acabados de nascer, o barulho dos carros, a sineta da bicicleta.
O Sol doce transborda por todas as divisões numa torrente de luz dourada, de sumo de laranjas quentes amadurecidas no mês de Agosto e manteiga derretida em torradas fumegantes feitas pelas mãos das avós.
Expiro o cheiro do mofo e das roupas velhas guardadas em baús esquecidos. Estilhaça-se o silêncio, seca a humidade nas paredes, que se pintam agora de cores novas e limpas. Acendem-se luzes. Ouve-se música.
E a janela torna-se maior que a minha boca.
Estende-se por todo rosto. Toda a cabeça. Chega-me aos braços, às mãos, às pontas dos dedos. Desce-me pelo peito, pelas pernas, os pés. Elevo os braços, toda eu sou janela. Atravesso-a. Atravesso-me a mim mesma.
Sou maior que a janela. Não, sou mais pequena que a janela. Também não, sou só a luz que entra na janela. Só a luz. Só a luz. Só a luz.
O arcano O Mundo dá-nos as boas-vindas a um inimaginável mundo novo, um novo paradigma, contudo parido por nós, dado-à-luz, depois de todas as aprendizagens concluídas, e introduz-nos agora num novo capítulo, mais pleno e sábio, com novos mistérios, novas etapas.
Tudo o que vemos no exterior, começa sempre no nosso interior. Nos olhos, na percepção. Vejamos, pois, o dealbar dos tempos que se seguem com os olhos mais limpos e sábios que nos for possível. Este é o novo mundo.
De janelas abertas,
Hazel
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Foto: Hazel, por Manuel Cardoso
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