Fadas, Pássaros e a Donzela-sem-nome


A noite é a senhora de todos os sonhos e pesadelos, assombros, deslumbramentos e horrores; guardiã das criaturas misteriosas, negras, doces e venenosas. As árvores assumem silhuetas sinistras e observadoras com braços magros que se alongam infinitamente para agarrar os mais incautos.

O gemido dos fantasmas que se deslocam através da neblina ecoa com a aragem fria e insinuante que serpenteia nos pescoços alvos e nus, onde o sangue quente lateja nas veias e atiça o apetite sôfrego dos vampiros, que escorrem saliva de desejo. O medo pressente os movimentos subtis, apenas perceptíveis pelo olhar vigilante da coruja. A loucura anda à solta de mãos dadas com as almas penadas.

Quando o último grão de areia desliza pela ampulheta, o vento muda de direcção e todos os círculos abertos na areia da praia se unem num só, criando uma passagem onde a cortina da realidade se desfaz. Os pássaros já o haviam pressagiado quando forraram o tecto do céu tornando o dia noite, em resposta ao chamado dela.

O veludo negro das horas nocturnas é trespassado pela luz delicada que se faz soberana abrindo caminho através das trevas. As árvores voltam a endireitar os ramos que perseguem quem foge e todas as criaturas tenebrosas se dissolvem como fumo no ar.

Tudo se encontra suspenso, cristalizado no tempo. O silêncio denso que a envolve e a clara percepção de uma presença sobrenatural que a observa de perto despertam-na do sono.

Senta-se na beira da cama, os cabelos escorrem como serpentes adormecidas nos ombros despidos e o olhar húmido prende-se na beleza translúcida e hipnótica de duas fadas envoltas num halo de luz etérea que se deslocam através do ar, ao seu encontro.

A donzela-sem-nome sucumbe inebriada de magia numa doce espiral de oblívio que ascende deixando para trás absolutamente tudo o que conhecia deste mundo.

Quem tem um encontro com as fadas, morre e volta a nascer meio-humano, meio-feérico, sem jamais esquecer o que viu. Nunca mais se volta a ser o mesmo.

A ponte de arco-íris entre este mundo de prazeres vãos e o outro de luz, claridade e silêncio, uma vez traçada, mantém-se para sempre. E as fadas regressam, em sonhos, para sossegar o medo de imaginar que são delírios ou sintomas de insanidade e, assim, confundir o ego demasiado frágil para admitir que elas são tão reais quanto uma partícula de ar: leves, flutuantes, subtis, inalcançáveis e, contudo, verdadeiras.

Neste pacto selado pelo amor e sem que alguma palavra houvesse sido proferida, estabelecido para toda a eternidade entre a donzela-sem-nome e as duas fadas, estas estenderam o seu halo de luz em seu redor, coroando-a com ervas e flores e tornando-a a terceira fada. E os anos passaram mais devagar para ela do que para as outras pessoas, mantendo sempre uma aparência mais jovem do que a idade, que se perdeu nos confins do tempo.

Desde então, as mãos delicadas e translúcidas das fadas desataram nós na teia-de-aranha, enviaram serpentes guardiãs que rastejam invisíveis em torno da donzela-sem-nome, sempre fiéis e vigilantes, e os seus lábios de néctar de madressilva sussurraram-lhe palavras sem som, que apenas podem ser escritas, mas nunca faladas.

Quando a noite regressa com os seus assombros, demónios e outras criaturas tenebrosas, as fadas estão sempre no intervalo dos caminhos. Às vezes, surgem luzes azuis na ponta dos dedos da donzela-sem-nome, e à sua volta. Um dia, ela resolveu escrever para recordar quando os anos ultrapassarem a distância da memória.

Sobre as asas das fadas,

Hazel

"Alto! Pára tudo. Onde vai com tanta pressa?"

Alto! Pára tudo. Onde vai com tanta pressa?”, pergunta o polícia-sinaleiro. 

“Vou para onde a vida vai, corro no seu encalço”, responde o condutor, afogueado e desatento. 

“Então, e não percebe que é você que a leva?”, remata o primeiro.

Este poderia perfeitamente ser um diálogo filosófico travado entre qualquer um de nós, sempre tão absorvidos pelos nossos próprios assuntos - para não referir os que ainda encontram tempo e energia para se ocuparem de temas alheios como se de seus se tratassem - e um polícia-sinaleiro dotado de olhos de lince e de uma lucidez cristalina que, do alto do palanque, consegue ver tudo o que se passa à sua volta.

Quando vamos depressa demais ou nos distraímos do nosso percurso, o apito da vida faz-se soar. E obriga-nos a parar. Sentimo-nos arreliados e frustrados, afinal, íamos na brasa atrás da mítica e inalcançável cenoura, alegremente inconscientes de que nos estávamos a tornar um perigo para nós mesmos e para os outros. Esquecemo-nos que o excesso de velocidade e a distração podem causar colisões ou mesmo atropelamentos; de sentimentos, da saúde, dos sonhos, do respeito.

A vida manda-nos parar quando menos queremos, mas quando mais precisamos. Tira-nos a carta de condução e deixa-nos fora de circulação por uns tempos para obrigar-nos a reencontrar-nos, a escolher outros caminhos mais construtivos e felizes, e deslocar-nos numa velocidade mais adequada à nossa capacidade de aprendizagem e superação. Afinal, se formos depressa demais, também não conseguimos apreciar a paisagem nem ler os sinais que se nos deparam pelo caminho.

A proposta da carta 4 de Espadas para esta semana é, justamente, parar para pensar e para ver tudo de outro ângulo, com um maior distanciamento. Tentar dormir mais horas, cuidar da saúde física, mental e emocional, manter uma alimentação saudável e equilibrada, meditar e aproveitar para redefinir prioridades. 

Se não lhe parece prioritário fazer nada disto, então está desesperadamente a precisar de fazê-lo. Feche os olhos e observe-se a partir de dentro:

O que é que realmente importa para si? 
O que o faz feliz? 
O que lhe causa insatisfação? 
O que gostaria de fazer, mas tem receio de não conseguir, de não estar à altura da tarefa?
Que sonhos deixou por realizar? 
Porque se sente tantas vezes cansado? 
Quais são os seus objectivos? 
Onde anda a desperdiçar o seu tempo? 

Faça estas perguntas a si mesmo e acrescente todas as que quiser. O apito está a tocar. Páre, em nome da verdade!

Hazel

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, 28 Janeiro

Hoje é o teu dia, filho

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Há 11 anos atrás, nasci mãe, pela vinda do meu filho.

Querido L., meu bebé que cheirava a flores e a caramelo, abençoado pelas Fadas que abriram o nevoeiro espesso como algodão-doce na A5 para deixar passar o mesmo carro que ainda temos hoje, de quatro-piscas ligados e águas que vertiam como um tapete de cristal que se estendia para a tua chegada.

Hoje, usas o perfume do Batman e gostas de cozinhar. O teu professor disse-me que andaste a atirar aviõezinhos de papel na aula. Apetece-me ralhar por isso, mas adoro-te e também te quero abraçar. E é nesta fronteira fina como um fio de cabelo de anjo que vive o infinito universo do amor incondicional para onde me levaste há 11 anos atrás, e de onde nunca mais saí...

Obrigada, filho.
Hazel

Carta ao Sindicato dos Suportes de Rolo de Papel Higiénico


Protesto! Sou um suporte de rolos de papel higiénico e quero trabalhar!

Nesta casa onde vivo, ninguém me respeita nem considera. Sou o objecto mais desprezado de todos. Passo semanas na companhia do mesmo rolo de cartão com apenas uma (1!) única folha esfarrapada de papel higiénico colada, que alguém deixou ficar para não ter de colocar um rolo novo. E assim fico abandonado, neste local de maus odores e vista para as nádegas e pendurezas que por aqui passam.

Outro dia, a porta da casa-de-banho estava entreaberta e, daqui do meu cantinho, nos azulejos entre a sanita e o bidé, consegui espreitar pela porta também meio aberta da casa-de-banho do lado, onde morava outro suporte de rolos de papel higiénico igual a mim, que era muito meu amigo, e o único que compreendia e partilhava as mesmas queixas que eu.

Contudo, fiquei tristíssimo. Ele já não estava lá. Alguém o deitou fora e, no seu lugar, estava — imagine-se — uma cesta de palha. Que pouca-vergonha. A delambida da cesta de palha, cheia de atitudes de lambisgóia com auto-proclamada importância, tinha um rolo de papel higiénico inteirinho dentro. É justo?

Receio muito pelo meu futuro. Cada vez que um par de nádegas se senta perto de mim, fico a pensar se serão as últimas que verei. E se um dia também serei substituído como foi o meu colega da casa-de-banho do lado. Protesto, pois, então! Quero trabalhar!

Os rolos de papel higiénico rodam com tanta alegria quando a sua folha é puxada para limpar entrefolhos obscuros e narizes ranhosos. Foi para isso que nasci.
Por favor, deixem-me trabalhar! Assinado: O suporte de rolos de papel higiénico.

Hazel

O Silêncio do Inverno


Hoje o tempo encontra-se tão musgoso quanto os muros centenários de Sintra.
A chuva cai sem pressa, teimosa e lânguida, enquanto a humidade se alastra pelas paredes e tectos transbordantes de água e sedentos de Sol. Deixou de se ouvir o canto dos pássaros, agora recolhidos sabe-se-lá-onde. Parece que vai chover para sempre.

A chuva ensina-nos a ser pacientes. A saber esperar, mesmo sem saber o que esperamos. A ajustar-nos a algo que ainda desconhecemos. A nada ansiar. A ocupar exactamente o espaço que ocupamos no mundo, nem um milímetro para a frente, nem para trás. No centro de gravidade.

Estamos na estação do silêncio. Da quietude e do olhar no vazio, esse lugar onde repousamos a alma das inquietações que não têm razão de ser, como são todas as inquietações.

Oiço a voz do Inverno no vento que viaja como dragão uivante através dos ramos das árvores e nas gotas de água espertas e brincalhonas que batem contra os vidros das janelas. Escuto a sabedoria da velha mulher de cabelos de teia-de-aranha e mãos calejadas, com a paciência das sementes que aguardam no interior da terra.

Nunca pensei dizê-lo, mas encontro-me a gostar do Inverno. Talvez por ter deixado de tentar estender os últimos raios de Sol até não conseguir mais, numa luta onde os dias escuros sempre fazem cheque-mate.

Aprendi a amar o vazio, o silêncio, a espera e até mesmo o frio. E por amá-los, encontrei a plenitude no primeiro, a sabedoria no segundo, a serenidade no terceiro e a força no último.

De cabelos molhados pela chuva,

Hazel