O raio que os parta

quinta-feira, outubro 27, 2016


Os relâmpagos desenhavam-se com assombro por uma mão imponente, invisível e absoluta, como raízes de luz e patas de aranha que rasgavam o veludo negro do céu nocturno. Em frente à janela de vidros embaciados onde o seu dedo tinha estado a contornar bonecas em vestidos compridos, Isabel sustinha a respiração.

Antigamente, abria-se sempre uma janela quando trovejava, murmurava a avó com a gravidade de quem recorda a aparição de um fantasma cujo reflexo nunca desapareceu dos seus olhos, como se tudo ainda estivesse a acontecer naquele preciso momento, corroborado pelo uivo do vento frio que se esgueirava através das frinchas das janelas de caixilharia velha.

Dentro da sua cabeça, que produzia zumbidos nos ouvidos, catástrofes naturais, vozes conspiradoras e doenças que não existiam, o bom-senso não tinha permissão para entrar e traçar limites. Todo o cosmos morava nos seus pensamentos.

Quando as lendas são mais antigas que todas as pessoas no mundo, assumem proporções bíblicas. Acredita-se nelas quando se é criança, e perduram ao longo de toda a idade adulta, porque os que viveram antes de nós também acreditaram. Alguns poderiam mesmo jurar tê-las vivido, de tão entranhadas sob a epiderme da memória colectiva.

Isabel sentia alívio pela existência de um pára-raios na vizinhança que dispensava a necessidade de abrir uma janela por onde um hipotético relâmpago pudesse sair, sem, contudo, reparar que alguém que não confiava na tecnologia moderna tinha discretamente entreaberto a porta de alumínio nas traseiras da casa.

Contava a velha lenda que numa noite de trovoada um raio entrou pela chaminé de uma casa, foi percorrendo todas as divisões, fazendo ricochete nas paredes como um demónio à solta e, como não encontrou uma janela aberta por onde pudesse sair, acabou por destruir a casa e matar toda a família. Naquele tempo, as lendas, relatadas por vozes idosas e trémulas, tinham tanto de assustador quanto de fatalista.

Nem sempre as paredes das casas se conseguem manter unidas, quando não existem alicerces suficientemente sólidos para sustentá-las. Isabel levou uma vida inteira até perceber, quando os cabelos brancos lhe começaram a despontar como relâmpagos na sua cabeleira cor de azeviche, e chegou a sua vez de passar o legado de deslumbres e assombros aos que observavam as noites de trovoada de olhos arregalados, que a janela aberta para o raio poder sair era uma metáfora para a possibilidade que não devemos negar a nós mesmos de recomeçar sempre que as nossas crenças e objectivos caem por terra.

O arcano A Torre irrompe através do nevoeiro como um clarão inesperado que revela as fraquezas para que possamos enfrentá-las em vez de ignorá-las. As vicissitudes podem ser exactamente a oportunidade que precisávamos para abandonar conceitos ultrapassados e ter a possibilidade de evoluir para um novo paradigma. Basta que tenhamos a coragem de abrir uma janela no momento certo.

Hazel
Consultas em Oeiras e online

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1604
Foto: Pat Brennan

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