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Crónica Imprópria para Aracnofóbicos


TENHO UMA ARANHA na sala. Não sei bem onde, mas anda por lá, ora encolhida e introspectiva no canto entre o tecto e a parede do sofá, ora feita lambisgóia atrevida, suspensa sobre a porta de entrada, como quem se prepara para pregar um susto aos que entram desprevenidos.

É meio cigana, sempre para cá e para acolá sem endereço fixo. A Dona Urraca, é assim que lhe chamo, não faz teia-de-aranha. Com muita pena minha, pois aprecio a impecável engenharia de fios de seda entrelaçados com exactidão matemática e individualmente afinados como cordas de violino. 

Esta é uma aranha afoita, de nariz empinado se o tivesse, que não troca a liberdade pela segurança e nunca há-de assentar. É uma filósofa, uma aventureira, que caça para se alimentar em vez de ficar pacientemente sentada sobre as oito patas na teia à espera que o almoço lhe caia por distracção mosquitídea.

JÁ A ARANHA DO ESPELHO LATERAL DO CARRO, paz à sua alma, que se finou na última ida à lavagem automática, fazia belíssimas teias-de-aranha que resistiam à chuva, ao vento e à velocidade. Mais do que uma companheira de viagem, ela era um valoroso sidecar aracnídeo, que conhecia todos os meus caminhos, atalhos e desvios. 

Possuía as capacidades místicas de um oráculo animal na antevisão de engarrafamentos, para além de fazer com despudorada habilidade aquele gesto com duas patas aos automobilistas que se impacientavam comigo nas raras ocasiões que me atrevi a conduzir em Lisboa. 

Ela INVENTOU a fast-food: fauna voadora escarrapachada contra a teia a uma velocidade de cento e vinte quilómetros por hora. É certo que fiquei com o veículo mais digno e limpo quando as escovas da lavagem que levaram as teias-de-aranha do espelho, porém passei a perder-me mais vezes.

Talvez a aranha de casa fosse mais feliz a viajar no carro, e a do carro tivesse encontrado maior conforto no canto da sala, sem que ninguém a apoquentasse. 

Explicou-me a Dona Urraca, vendo-me acabrunhada neste desvario existencialista, que a nossa casa é dentro de nós. Ela sabe. É uma aranha batida, já viajou muito na vida: desde a parede do sofá até à porta de entrada da sala. Logo deduzi que até no meio dos meus livros essa saltimbanca de oito olhos andou, pois era o Mário Quintana que dizia «eu moro em mim mesmo». 
Sorrio constatando que as minhas aranhas sabem mais que eu.

O arcano Dez de Ouros incentiva-nos a observar o local onde vivemos sob diferentes perspectivas e a ordená-lo, afiná-lo com delicadeza aracnídea, encontrando o lugar para cada coisa – e um sentido para tudo. Dentro de casa e, como diz a Dona Urraca, que gosta de Mário Quintana — dentro de nós.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1622
foto: bernswaelz, licença CC0
Cronista, Viajante no Tempo, Terapeuta, Taróloga, Tradutora, Professora.

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