O fio do tempo


De braços abertos à largura do horizonte, procuro o equilíbrio apesar das línguas sibilantes de vento que me lambem o corpo, ora amparando, ora levando-me a oscilar. Caminho descalça sobre o fio retesado que une o nascimento à morte.

Os primeiros passos, ansiosos e apressados, frustravam-se pela lentidão com que o fio do tempo se desenrolava à minha frente iludido de eternidade. Quando julguei que tinha chegado a um ponto de segurança, sentei-me no fio e deixei-me ficar como um pássaro pousado nos cabos que unem os postes de electricidade — mas o fio do tempo estagnou e os meus pés arrefeceram.

Retomei a caminhada, passando por labirínticos enleios, nós apertados e laços desfeitos. O ritmo da passada abrandou, contudo, o fio do tempo passou a fugir-me debaixo dos pés como os riscos da auto-estrada. Quanto mais ele me foge, mais devagar caminho — numa vã tentativa de levar a melhor ao tempo.

A urgência e a curiosidade foram superadas pela consciência da tesoura afiada segura por mãos velhas e ossudas que em misteriosa hora cortará a outra ponta do fio sem piedade, tornando insignificantes todos os enleios, todos os laços, todos os nós. Nada disto importa.

Olho em frente para não cair. Os pés tremem, o vento uiva, mas olho em frente, ainda que de olhos embaciados como a escotilha de um navio sovado pelas ondas do mar. Não posso cair. Não posso. Não posso cair, porque se caio, não páro de cair mais fundo do que o chão, mais fundo do que a Terra, mais fundo do que os infernos dantescos até ser engolida por um buraco negro e cessar de existir.

O que se passa é que perdi uma amiga. A implacável tesoura, sem aviso prévio, cortou-lhe o fio da vida, levando-a inesperadamente a empreender a derradeira viagem rumo à imensidão etérea. O meu mundo ficou subitamente mais pobre, mais baço, mais cinzento-tabaco. A rede de segurança que me sustenta ficou com um buraco impossível de remendar. E agora, se eu cair, o que é que me agarra?

Esta semana, o arcano 2 de Copas leva-nos a reflectir sobre as ligações que estabelecemos uns com os outros, onde, como dizia a canção de Rui Veloso, “muito mais é o que nos une do que aquilo que nos separa”.

Nem o fio do tempo, nem a gélida tesoura conseguirão apartar-nos daqueles que amamos. Apenas a falta de amor o poderá alguma vez fazer. E que esse nunca nos falhe. Que o consigamos demonstrar a tempo, por palavras e actos, enquanto o fio ainda está inteiro. Até sempre, Ana Paula Boturão (1963-2017). Obrigada por tudo.

Hazel
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1633
Foto: detapo, licença CC0

Crime Organizado Entre Panelas e Peúgas


HÁ UMA FALHA entre dois azulejos ao lado do fogão por onde vi deslizar silenciosamente um tentáculo da Máfia siciliana. A minha cafeteira é uma ladra chupista. Coloco-lhe a água em baixo, o café no depósito central, enrosco a parte de cima e acendo o lume. A gangster-octogonal colabora sem oferecer resistência, como uma boa-e-honesta cafeteira acima de qualquer suspeita.

A água ferve e sobe, percorrendo a secção onde se encontra o café, até chegar ao compartimento superior — dizem os vrais connaisseurs que o café é mais saboroso se subir em vez de descer, por algum misterioso motivo. No entanto, mal desligo o lume, ela — a velhaca — chupa o café de volta e fica com ele no andar de baixo.

Não será pela necessidade de beber o meu café-levanta-mortos que a cafeteira-chupista o rouba, mas certamente porque a Cosa Nostra chega a todo o lado. Uma pouca-vergonha pegada com sotaque italiano.

Mais ao fundo da cozinha, insuspeita junto à janela, encontra-se a sua comparsa, a máquina de lavar roupa. Essa é mais imprevisível na metodologia criminosa.

BREVE RECONSTITUIÇÃO DO ÚLTIMO CRIME OCORRIDO:

Dirigiu-se esta vossa escriba com o alguidar da roupa para lavar na anca direita (toda a gente sabe que as ancas das mulheres servem para encaixar o alguidar), ajoelhou-se junto à máquina de lavar e colocou a roupa lá dentro: um pijama axadrezado, camisolas, calças de ganga, dois vestidos, toalhas de banho, todo um arsenal de cuecas pretas e, por fim, as cobiçadas peúgas. 

Lembro-me perfeitamente de ter colocado para lavar aquele par de meias castanho-escuras com desenhos que comprei "para o meu filho" (mas que acabaram por ficar para mim).

Regulo a máquina para o programa da roupa escura e vou aos meus afazeres. Quando a dissimulada mafiosa termina de lavar, retiro a roupa do seu interior e, com grande espanto, constato que apenas se encontrava uma (1!) das meias dos desenhos. 

Rodei o tambor, inspeccionei a roupa toda, mas a infeliz meia desapareceu como se nunca tivesse existido, deixando órfã a irmã gémea. O desaforo não acaba aqui: apareceram, não uma, nem duas, mas três outras meias pretas que não coloquei para lavar.

É do demo: roubou-me uma meia e deu-me outras três que tinha furtado noutras lavagens em troca, como quem permuta reféns menos valiosos por outros que interessam mais.

Estou profundamente indignada com a patifaria que se está a passar na minha cozinha. Tanto a cafeteira quanto a máquina de lavar são membros executantes da Máfia, essas filhas-da-mãe.

O arcano Cinco de Espadas surge-nos bruscamente como um gangster sem coração para nos levar as meias, o café e o bom-senso, numa batalha perdida onde ninguém é genuinamente vencedor.

Por vezes, o melhor é agir com distanciamento e não dar confiança à malandragem. Como vou fazendo com os atrevimentos dos mafiosos da cozinha: ignorar, evitar conflitos e conferir a roupa suja que se lava.

Hazel
Consultas em Cascais, Oeiras e online
Marcação: casa.claridade@gmail.com

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1632
Foto: andreas160578, licença CC0

Pista: 38.693449,-9.309771


Está decidido. Amanhã vou fugir. Já tenho a mala pronta. Caderno e lapiseira para algum rasgo de inspiração que possa surgir desavisadamente, uma muda de roupa para o caso de precisar de dormir fora, lápis preto para os olhos — terão de me perdoar a vaidade —, escova de dentes e desodorizante (pretendo ser uma fugitiva digna e asseadinha), e um telemóvel desligado. Acreditem em mim, vou fazê-lo. Dixit. Ninguém sabe; nem às paredes que me rodeiam confidenciei tão inusitado plano.
É segredo absoluto.

Não fujo à polícia. Tenho as contas em dia, actividade profissional legalizada, e apenas uma multa de estacionamento à espera de perdão divino, bem como o cartão de cidadão fora de prazo por casmurrice minha — porém, nada que justifique uma busca policial pela singela pessoa que vos escreve. Também não fujo de algum desgosto ou tristeza. Todos sabemos que a tristeza, quando quer apanhar alguém, agarra-o pelos artelhos e já nem à casa-de-banho o desgraçado consegue ir condignamente.

É do tempo que fujo, esse grande garganeiro. A mim não engana ele. Então, ainda há meia dúzia de dias nasci, até me lembro de estarem todos à espera que acabasse a “Gabriela, Cravo e Canela”, que estreava em Portugal, para fazerem o meu parto e agora, sem mais nem menos, diz que amanhã se completam quarenta anos que aqui estou? A areia da ampulheta gigante que mede a passagem do tempo anda certamente a ser desviada lá para as praias de São Pedro de Moel.

Chegados a este parágrafo, credes, amáveis leitores, que esta seja talvez uma crónica como as outras e que tudo isto é uma inocente metáfora. Contudo, sabem aqueles que me conhecem de perto que não gosto de fazer anos, é uma data que me causa sempre uma ansiedade irracional que me leva a desligar o telemóvel e a esconder-me em casa como quem se prepara para uma catástrofe nuclear. Por algum motivo, fico sempre assim no dia do meu aniversário, e esforço-me por fingir que estou contente para não ser uma bota-de-elástico desmancha-prazeres.

Amanhã vou estar mais velha, mais flácida, mais sábia e ajuizada (pelos vistos, nem ao menos isso!) e um ano mais perto da morte. Uhu, que emoção. Assim, este ano, porque a idade é um estatuto e só se faz quarenta anos uma vez, decidi celebrar o meu aniversário de forma a que nunca mais esqueça, mesmo que um dia o Alzheimer me apanhe desprevenida, e fazer algo que realmente me divirta: uma charada.

O meu bilhete de fuga é, justamente, esta crónica e a primeira pista para alguém me encontrar é a sequência de números que está no título. Quando encontrarem o local, terão de responder a um enigma (o enigma será entregue apenas directamente no local, e não por telefone). Quem responder correctamente, terá outra pista onde poderá ser dada a minha localização. Os corajosos que conseguirem encontrar-me, receberão de presente uma leitura de Tarot. Boa sorte! 😃

Hazel
Consultas em Cascais, Oeiras e online

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1631