Beldade de Labaredas Pintadas

quinta-feira, setembro 07, 2017


O Tragédias olhou em frente, mordeu o lábio inferior e contraiu o esfíncter como se isso o fizesse encolher e passar despercebido ao carro da polícia parado no cruzamento com a Rua Artilharia 1. Safou-se, o marialva de cabelo lambido. Por segundos de distracção policial quase era mandado parar por circular sem farol traseiro na mota e com o escape meio solto, a dar-a-dar, montado à pressa como fazia todas as manhãs para ir trabalhar.

«Esta ninguém m'a tira», pensava enquanto dava um estalo de satisfação com a língua. Depois de, nos últimos três anos, lhe terem roubado pela calada da noite quatro motorizadas seguidas que muito suou para pagar, tomou medidas drásticas — e criativas. A última aquisição, uma Honda CG 125 vermelha, antiga mas com umas labaredas desenhadas que lhe davam estilo e personalidade, era todos os fins de dia desmontada num tempo record de dezasseis minutos. Os gaiatos da rua sentavam-se no passeio a apreciar a velocidade com que as peças saíam, de olhos brilhantes e cronómetro na mão.

A porta de casa escancarava-se como se esta acabasse de ser invadida por uma trovoada trôpega com cheiro a cerveja e uma cacofonia metálica de escape, amortecedores, espelhos, faróis, manetes de travão, selim, depósito e tudo o que conseguisse enfiar dentro da cozinha, para garantir que o pouco da beldade-com-labaredas que pernoitasse na rua não valeria aos larápios o esforço de partir correntes e cadeados, e ainda lá estaria ao raiar do dia.

Os gritos e o vernáculo desesperado do Tragédias à procura das peças eram o despertador da Rua da Bica todas as manhãs nos dias de semana; era uma cómica tragédia, porque nunca encontrava as peças todas. Desmontar era fácil, mas voltar a montar a Honda era outra conversa. «Ai homem, tu matas-me!», os chinelos da Edite, que começava o dia a correr afogueada com os faróis apertados contra o peito montanhoso para não caírem ao chão, ouviam-se apressados escada-acima-escada-abaixo no prédio.

«‘té logo!» Lá ia ele. Dobrava a esquina triunfante por ter levado a melhor aos ladrões, ainda que isso implicasse ter todos os dias o fadário de desmontar e montar a motorizada.

O arcano Sete de Espadas surge-nos como um vil malandro à espera da ocasião que o revelará patife sem coração, capaz mesmo de tentar preencher o próprio vazio com a segurança do colchão alheio, por maldade ou mesquinhez de alma empobrecida que nunca conseguirá, por isso, encontrar um vislumbre de luz.

Resta-nos, tal como o genial e persistente Tragédias, separar por peças toda a nossa estrutura, reinventar-nos, recriar-nos diariamente. Todos os dias são dias para começar de novo.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1646
foto: Free-Photos, licença CC0

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