Um novelo de cotão, um pedaço de Chocapic, um papel de rebuçado bola-de-neve amachucado e uma lasca de coração. O meu. Homessa, o que uma pessoa descobre quando muda o sofá de lugar.
Reuni o bocado de coração aos outros que se encontravam esparsos como fragmentos de navio naufragado; debaixo da cama, dentro do copo das escovas de dentes, caídos no fundo do frigorífico. Cheguei mesmo a encontrar um pedaço do ventrículo inferior esquerdo a balançar no candeeiro da sala.
Andei a juntá-los com Paciência para ver se conseguia consertar com cola-tudo, mas ficaram a faltar bocados. Desnorteada, deitei tudo fora. Já diziam os antigos, cacos só trazem infelicidade.
De maneira que andei uma data de dias por aí sem coração. O sangue circulava por especial favor do cérebro que veio fazer as vezes do órgão cardíaco, mas que me moía o juízo com reclamações por estar a fazer o trabalho do outro.
Onde é que desencanto agora um coração novo, indaguei aos meus botões e ao fecho-éclair da saia. Apareceram corações de papel, de loiça e até de pano — que não tinham serventia. O meu teria de ter sangue, nervoso miudinho, veias, força, alma, paixão, ganas.
Agarrei no pano do pó, no espanador-de-penas-verdes e na esfregona, e pus-me a limpar o espaço desabitado junto aos pulmões. Lavei, esfreguei, tirei as teias-de-aranha abandonadas e até pendurei quadros novos.
Mas nada ali morava além do vazio silencioso e de uma dormência em sentir fosse o que fosse. Nem uma mosca se ouvia. Receei estar a tornar-me, agora sim, uma besta. A ser, pelo menos, seria uma besta limpinha e organizada. Daquelas que até dobram o pijama e o guardam debaixo do travesseiro.
Azedo e impiedoso, o arcano Três de Espadas ensina-nos que não somos um par de sapatos para ficar arrumados numa caixa. Bem sabemos que os sapatos guardados vão sempre magoar-nos os pés e mordê-los como se tivessem dentes.
Para meu espanto, no outro dia, quando encostei a cabeça no travesseiro, ouvi um barulho que se tinha tornado quase desconhecido. Alguém a martelar nas paredes?
A música dos vizinhos? Kizomba (o horror)? Um carro a buzinar? Não, não podia ser.
Ga-gum, ga-gum, ga-gum, insistia o barulho. Pelas abençoadas banhas na barriga de Afrodite, querem lá ver que. Que isto. Que isto é. Um. Coração? Dentro do travesseiro? Acendi o candeeiro da mesa-de-cabeceira de olhos arregalados.
Não, o travesseiro não tinha nada lá dentro. Ai Senhores. Deitei as mãos ao peito, os ribeiros a escorrerem-me pelos olhos, quando descubro que era cá dentro, aqui.
Páro de escrever e espeto um dedo no peito como se vós que me ledes pudésseis ver.
Um coração a bater dentro de mim. Novinho em folha, acabado de nascer.
‘que pariu! Renasceu, o safado. Renasceu. Tudo passa. Também isto passará.
E passou. Adeus, Agosto; vai, que já vais tarde.
Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1645
Foto: Gere, licença CC0
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