Cantar de Galo


Ainda o galo não abriu o gasganete para cantar os bons-dias e já se ouve o velho tractor a andar para-cá-e-para-lá. De ceroulas arrepanhadas até aos sovacos e olhos esbugalhados das noites mal dormidas, o homem anda desnorteado com o trabalho.

«Havia de ir ali pedir um tractor emprestado ao meu compadre, mas de certeza que ele não mo empresta», remói baixinho com azedume. O galo alonga o pescoço e espreguiça com satisfação as asas que reluzem douradas aos primeiros farrapos de luz matutina.

«Com tanto tractor que tem aquele gordalhufo capitalista, bem que me podia emprestar um; se tivesse dois tractores já conseguia dar conta de tudo.»

As patas do galo emproado, duras e rugosas da velhice, tacteiam o chão, encaminhando-se para cantar os bons-dias do alto do poleiro, mas este foge espavorido com o estrondo do motor subitamente engasgado, em convulsões com os últimos estertores da morte que se apresentou sem avisar com uma correia que rebenta.

Enraivecido, Zé Onofre pontapeia o pneu enlameado e atira com o chapéu para o chão. Só faltava isso; ficar sem o único tractor que tinha. Coxeia em direcção à vedação que o separa do terreno verdejante do compadre. «Aquele garganeiro, com tantos tractores, há-de estar a rir-se de mim agora.» Os dedos calejados levantam a tábua que prende a cancela e os cães do vizinho ladram em protesto, reclamando o território.

Os degraus de madeira rangem com queixume debaixo do peso das botas que caminham com a irregularidade de quem está de cabeça perdida. Sorve o ranho do nariz e bate à porta sem delicadeza. Ouvem-se passos no interior da casa.

O compadre surge, de chanatas nos pés e remelas nos olhos ensonados. «Bom d…», «Olhe! — corta o Zé Onofre, com uma voz que se lhe esganiça embaraçosamente com a irritação — Meta os tractores no cuuu!».

Sai de rompante, virando costas ao vizinho, sem que este consiga fechar a boca incrédula. Do outro lado da vedação, ouve-se o galo cantar.

O arcano Três de Ouros recorda-nos que nenhum homem é uma ilha. Trocando o orgulho pela boa-vontade, a impulsividade pelo bom-senso e o individualismo pelo trabalho de equipa, tudo se arranja. Juntos chegamos mais longe. O único que canta de galo sozinho é mesmo o galo.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1658
foto: Public Domain Imagens, licença CC0

Medo do que os Outros Possam Pensar


Alzira preferia morrer a sujeitar-se ao vexame insuportável de se separar do marido, que desprezava secretamente, mantendo durante toda a vida um casamento falecido, sem jamais suspeitar que o objecto da afeição do seu consorte era o Peixoto do talho.

O Peixoto, robusto e hirsuto, nunca cheirava a carne, mas a colónia-de-bebé. Viu-se forçado a herdar o negócio do talho que era do pai, e já tinha sido do avô, mas o que sempre quis foi ser maquilhador como a Xana, a sua amiga lésbica. A Xana tinha (quase) tudo, a profissão dos seus sonhos e uma sexualidade livre e publicamente assumida.

Para evitar críticas e aborrecimentos, Xana nunca foi mãe, apesar de sempre o ter desejado ardentemente. Tornou-se madrinha de uma menina já adolescente que se encontrava num centro de acolhimento de crianças e que era demasiado crescida para que alguém a quisesse adoptar. Tinha sido deixada recém-nascida dentro de uma alcofa sem um bilhete sequer. Chama-se Anita.

Nunca se suspeitou que Anita era filha da Alzira com o namorado que teve antes do marido (um cretino qualquer armado em fidalgo que não quis assumir a paternidade porque iria prejudicar os estudos e arruinar o estatuto de menino-de-bem).

Quem realizou o parto, com a máxima discrição, foi aquela que viria pouco depois a ser sua sogra; que arranjou maneira de casar Alzira às pressas com o filho, uma conveniência supostamente para Alzira não cair em desgraça — mas, na realidade, tinha visto pelo buraco-da-fechadura o filho agarrado ao Peixoto, e tinha medo das bocas-do-povo perante tamanho escândalo.

O inconsolável Peixoto passou anos a chorar enquanto cortava bifes e enchia salsichas frescas, sem que ninguém soubesse o motivo. Só Xana o conseguia animar quando o maquilhava e o transformava em mulher para irem sair à noite.

Por medo de cometer suicídio social, todos preferiram assassinar os seus próprios sonhos e desejos, convictos de que existe apenas um caminho possível e que este culminara num beco sem saída, onde se resignaram a permanecer, aprisionados pelo medo-do-que-os-outros-possam-pensar.

O arcano Oito de Copas questiona-nos: estamos onde realmente desejamos estar, ou onde os outros esperam que estejamos? Ficamos porque estamos felizes, ou porque temos medo de ir embora e do que os outros possam dizer ou pensar?

É mais importante agradar aos outros ou a nós? O que gostaríamos de mudar neste preciso momento? E estamos à espera de quê, carago?

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1656
Foto: shawnrandall, licença CC0

No Creo en Brujas pero que Las Hay Las Hay


Sempre me intrigaram aquelas castanhas engelhadas, mais velhas do que eu, que nunca ganhavam bicho, no fundo das gavetas da roupa.

É por causa das bruxas, dizia sem mais esclarecimentos a minha mãe. Lá em casa, ninguém gostava de bruxas. Pantominices!, É tudo uma pantominice, saía-se a minha avó enquanto compunha o cordão de ouro ao pescoço. Tinha mais de cem anos (não a minha avó, mas o cordão), e chegava até aos pés se ela não lhe desse as habituais três ou quatro voltas, o que não era caso para grande espanto, porque tinha, como se dizia, nascido nos dias pequenos.

O seu olhar verde-seco e aguarelado, esbatido pela idade, fixou-se num ponto suspenso no ar, como se observasse o fio invisível do tempo. Toda a sua expressão se suavizou, parecendo readquirir o viço dos vinte anos, vividos em Vila Boim, ali mesmo à beirinha do país, onde a pronúncia castelhana se mistura com a portuguesa como as águas de dois rios que se encontram. Alguém lhe entrara em casa durante a noite e furtou o cordão de ouro.

Não valia a pena ir à Polícia, naquele tempo. Foi à bruxa. Que lia o futuro em cartas de jogar ou com uma agulha pendurada em linha de coser; tirava o quebranto e o mau-olhado; fazia purgas e curava o bucho-virado e outras maleitas que os médicos não conseguiam tratar. Não acreditava nela, não gostava dela, mas precisava dela e, portanto, meteu-se a caminho sem contar nada a ninguém.

A mulher versada nas artes misteriosas recebeu-a numa sala sinistra e mal iluminada, com lamparinas acesas, santinhos e um previsível cheiro a arruda queimada. Deu-lhe uma oração para recuperar objectos roubados escrita num farrapo de papel e as seguintes indicações: dizê-la ab-so-lu-ta-men-te todos os dias e em seguida estar “atenta aos sinais”.

Passou-se cerca de um ano sem que a minha avó desistisse. De tantas vezes ler a oração, acabou por memorizá-la. Transcrevo-a tal como me foi transmitida, sem alterações, imaginando que pândega seria se todos os portugueses a lessem diariamente no intuito de recuperar o tanto que vai para impostos e taxas bancárias:

«Ó almas do Purgatório, Eu com nove tenho mistério, Três dos enforcados, Três dos mal-sentenciados, Três da morte a ferro frio, Para que todos os três, os seis, os nove, Vão ter ao coração dessa pessoa que me tirou (nome do objecto roubado), Não possa estar, nem dormir, nem descansar, Se as almas assim fizerem, Eu um terço lhes vou rezar.»

Depois da ladainha, a minha avó (que não era ainda avó nem mãe) ia para o quintal apanhar a aragem fresca do lusco-fusco alentejano enquanto atentava “aos sinais”.

Passavam as pessoas que regressavam do trabalho e ia escutando fragmentos soltos de conversas aleatórias que se uniam como um puzzle sobrenatural, dando-lhe pistas que acabariam por guiá-la até ao cobiçado cordão. Este acabou por regressar às suas mãos e foi dela até ao último dia da sua vida.

O arcano Dez de Ouros recorda-nos que aquilo que é nosso por direito, e que verdadeiramente nos está destinado, a nós retornará no devido tempo. Excepto os impostos e taxas bancárias, que é que se há-de fazer.

O Universo encontra sempre forma de repor o equilíbrio, acertar contas e arrumar a casa.
E tudo o que escrevi nesta crónica realmente aconteceu.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1654
foto: smokefish, licença CC0