Conte-me a sua História


Não fosse a escassez de topete para tal arrojo e sentar-me-ia na Baixa Lisboeta com a tabuleta “Todas as pessoas têm uma história. Conte-me a sua”, à espera que alguém se sentasse à minha frente e o fizesse.

Pelo-me por uma boa história. Quando era gaiata, entrei num livro e nunca mais de lá saí. Cresci a andar de baloiço nas linhas brancas que cosem as páginas em grupos de quatro. Refastelo-me no espaço aconchegante que separa as palavras, com uma vírgula redonda e macia a fazer de almofada. Às vezes, saio para apanhar ar entre parágrafos. Ou fico na linha, agitada, ponto-exclamada. Raras vezes me perco em reticências, que evito. Não confio nelas... Seduzem-me, porém, o ponto-e-vírgula e o travessão, vilões da monotonia.

Foi uma tristeza quando a carrinha da Biblioteca Itinerante de Oeiras deixou de se deslocar à rua que me viu crescer como um esparguete (mais para cima que para os lados), porque não compensava, visto ser a única leitora.

Para me consolar da perda, e porque os livros que tinha contavam-se pelos dedos, refugiei-me no regaço do enorme Dicionário Ilustrado de Português, forrado a tecido cor de café-com-leite, que li de fio a pavio, tendo encontrado, certa vez, um erro de ortografia (!) — o que muito me indignou. Completava compulsivamente as palavras-cruzadas que saíam nos jornais e comia canja com massa de letras.

Correspondi-me (antes da internet) com uma idosa inglesa, minha penfriend, a quem enviava longos testamentos sobre os dilemas da adolescência e fi-lo até ela acabar por falecer (espero que não de tédio).

Não tenho televisão. Nem quero. Contudo, há sempre espaço para mais um livro. Fiz bookcrossing. Apanhei livros do lixo. Comprei muitos. Doei bastantes. Devo ter roubado algum livro por velhacaria, que eu não sou santa. Tenho a certeza que sim. Mas devolvo os que me emprestam. Fui uma “Book Loving Girl” no projecto com o mesmo nome, do fotógrafo Mário Pires, exposto na Fnac.

Sinto-me culpada se desistir de um livro, como aconteceu com “As Ondas” de Virginia Woolf, que me deixaram mareada de aborrecimento e com “O Mundo de Sofia” de Jostein Gaardner, que me induziu num estado semi narcótico — do qual despertei-de-olhos-arregalados com o governo do “Papillon” de Henri Charrière.

Há sempre um livro na minha mesa-de-cabeceira. E caderno-e-lápis no carro e na mala. Escrevi mais de mil textos, publicados nos últimos dez anos, no meu blog(ossauro). A árvore de Natal aqui em casa é uma torre de livros empilhados com uma estrela de cartolina em cima.

Traduzi e revi livros de outros autores. Nunca escrevi o meu. Talvez nunca aconteça. Sinto-me satisfeita por degustar o que os outros escrevem, e quando não escrevem o que me apetece ler, escrevo-o eu, aqui e acoli. E está bem assim.

O arcano Três de Paus incita-nos a abrir as gavetas e a banhar os apontamentos e rascunhos com a luz do dia. A arriscar, a encontrar o nosso próprio caminho à medida que o percorremos. Ora aí está. Vou escrevendo, até escrever.

Hazel
Consultas em Cascais, Oeiras e online Tarot | Reiki | Regressão | Reprogramação Emocional | Terapia Multidimensional
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1660

Boneca de Porcelana


VEIO DE PARIS, bien sûr. Os cabelos cor de trigo sarraceno emolduravam-lhe o rosto róseo e delicado, com olhos redondos e inocentes, sobrancelhas eternamente espantadas e lábios pequeninos, cheios de segredinhos tentadores. O vestido era uma harmonia de azul e alfazema, remetendo aos campos perfumados de Provence, e os sapatos brancos, assim como as meias.

Vinha dentro de uma caixa com uma espécie de janela em plástico transparente.
O mais belo e valioso presente da minha infância. Tão precioso que seria uma pena se se partisse e, por isso, foi guardada no topo de um armário, longe do meu alcance.

Quando ninguém estava a ver, às vezes encostava uma cadeira ao armário, subia e, em bicos de pés, esticava-me para abrir a porta e tirar a caixa com a boneca de porcelana. Não chegava a brincar com ela, não me atrevia. Deixava-me ficar a contemplar os seus detalhes em silêncio culpado, como se estivesse a mexer num brinquedo de outra menina qualquer que tinha tudo o que eu não era digna de ter — embora ela fosse minha.

Voltava a colocar a caixa com todo o cuidado no mesmo lugar sem deixar pistas que denunciassem a minha transgressão. Fiz isso regularmente até acabar por perder o interesse, com as hormonas da mudança de idade.

Mais do que o objecto obsoleto em que se tornou, era um defunto que não chegara a viver e que me foi finalmente entregue já adulta, quando tive a minha própria casa. Recebi-a com um desinteresse que não quis disfarçar. Deitei a caixa para o lixo e coloquei-a em cima do frigorífico, na cozinha, como um bibelot que não se sabe onde colocar.

O azul frio do seu vestido entristecia-me. Ali estava a minha boneca, desfasada no tempo, tarde demais para que eu pudesse brincar com ela, sempre a recordar-me que era boa demais para mim e que o meu tempo tinha passado. Desenvolvi uma revolta contra ela, como se fosse ela a culpada. Guardei a lambisgóia deslavada no fundo de uma gaveta para não ter de olhar para ela. Mas quando precisava de abrir a gaveta, lá estava ela, com um leve sorriso que me parecia sonso e cruel.

Numa limpeza de Primavera, decidi livrar-me dela. Coloquei-a à venda numa loja de antiguidades por tuta-e-meia. Saí de lá aliviada. Mas ainda a vejo. Onde quer que more, ela aparece-me, assombra-me, sorri em silêncio, recorda-me que era minha, mas nunca a pude ter; e quando a tive, já não a quis porque me magoava tê-la.

O arcano Cinco de Ouros leva-nos a reflectir sobre as cicatrizes antigas que por vezes nos moldam a personalidade com contornos que preferíamos não ter. Recordar é enfrentar. E enfrentar é curar.

Hazel
Consultas em Cascais, Oeiras e online
Tarot | Reiki | Regressão | Reprogramação Emocional | Terapia Multidimensional

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1659
Foto: MabelAmber, licença CC0