VEIO DE PARIS, bien sûr. Os cabelos cor de trigo sarraceno emolduravam-lhe o rosto róseo e delicado, com olhos redondos e inocentes, sobrancelhas eternamente espantadas e lábios pequeninos, cheios de segredinhos tentadores. O vestido era uma harmonia de azul e alfazema, remetendo aos campos perfumados de Provence, e os sapatos brancos, assim como as meias.
Vinha dentro de uma caixa com uma espécie de janela em plástico transparente.
O mais belo e valioso presente da minha infância. Tão precioso que seria uma pena se se partisse e, por isso, foi guardada no topo de um armário, longe do meu alcance.
Quando ninguém estava a ver, às vezes encostava uma cadeira ao armário, subia e, em bicos de pés, esticava-me para abrir a porta e tirar a caixa com a boneca de porcelana. Não chegava a brincar com ela, não me atrevia. Deixava-me ficar a contemplar os seus detalhes em silêncio culpado, como se estivesse a mexer num brinquedo de outra menina qualquer que tinha tudo o que eu não era digna de ter — embora ela fosse minha.
Voltava a colocar a caixa com todo o cuidado no mesmo lugar sem deixar pistas que denunciassem a minha transgressão. Fiz isso regularmente até acabar por perder o interesse, com as hormonas da mudança de idade.
Mais do que o objecto obsoleto em que se tornou, era um defunto que não chegara a viver e que me foi finalmente entregue já adulta, quando tive a minha própria casa. Recebi-a com um desinteresse que não quis disfarçar. Deitei a caixa para o lixo e coloquei-a em cima do frigorífico, na cozinha, como um bibelot que não se sabe onde colocar.
O azul frio do seu vestido entristecia-me. Ali estava a minha boneca, desfasada no tempo, tarde demais para que eu pudesse brincar com ela, sempre a recordar-me que era boa demais para mim e que o meu tempo tinha passado. Desenvolvi uma revolta contra ela, como se fosse ela a culpada. Guardei a lambisgóia deslavada no fundo de uma gaveta para não ter de olhar para ela. Mas quando precisava de abrir a gaveta, lá estava ela, com um leve sorriso que me parecia sonso e cruel.
Numa limpeza de Primavera, decidi livrar-me dela. Coloquei-a à venda numa loja de antiguidades por tuta-e-meia. Saí de lá aliviada. Mas ainda a vejo. Onde quer que more, ela aparece-me, assombra-me, sorri em silêncio, recorda-me que era minha, mas nunca a pude ter; e quando a tive, já não a quis porque me magoava tê-la.
O arcano Cinco de Ouros leva-nos a reflectir sobre as cicatrizes antigas que por vezes nos moldam a personalidade com contornos que preferíamos não ter. Recordar é enfrentar. E enfrentar é curar.
Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1659
Foto: MabelAmber, licença CC0
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