Borboletário

quarta-feira, janeiro 10, 2018


As curvas do meu corpo macio insinuam-se numa dança ondulante e silenciosa à medida que me movo com languidez, inconspícua por entre a folhagem que emoldura a paisagem límpida e orvalhada da manhã. Ocasionalmente, uma folha ou outra roçam-me a pele nua.

Alimento incessantemente o apetite voraz, erótico e insaciável que me consome. Os pedaços de folha tenros desfazem-se aos poucos na minha boca pequenina e húmida que não pára de sugar e de procurar por mais e mais e mais, até finalmente atingir — a saciedade.

Esgotada e preenchida, arrasto-me com lentidão; procuro uma folha onde possa abandonar-me ao repouso digestivo. Rastejo com esforço, o corpo dilatado, exausto, num êxtase guloso que gradualmente se agudiza em dor. Os meus fluidos jorram lentamente como um rio doce sobre os nervos da folha verde, onde me suspendo em crisálida para enfim encontrar o silêncio secreto; e nele, o caos, a desordem imóvel, a dor que me dilacera, que me liquefaz, que me destrói. Ninguém consegue ouvir os meus gritos mudos. Nem eu. Mas grito.

Os sucos circulam lentamente, latejam na escuridão, cada vez mais devagar até se tornarem espessos, coalhados. Ninguém me pode ajudar; rendo-me à morte. Morro. Eu não sou eu. Não sei o que sou. Não sou, sequer. Morro. Morri. Sinto alívio. Já não dói mais. Não tenho dor, nem medo, nem fome. Nem sede.

Silêncio.

Um ponto fino de luz pulsa no escuro, e cresce aos poucos. A dormência desvanece; chegam até mim sons difusos de não muito longe. Sinto-me apertada, falta-me o ar. Preciso de espaço, de me movimentar. Tenho sede, tenho fome, tenho ânsias de sair, senão morro. Preciso de sair da morte para não morrer de vez, mesmo que morra a fazê-lo; preciso de viver, para não morrer.

O arcano A Temperança indica-nos o caminho: sempre em diante, em direcção à luz. Atrás está a morte, à frente a sabedoria. Que as experiências vividas no passado nos sejam mestras e não nos amargurem —, e delas sairemos ilesos, capazes de voar, cumprindo assim a nossa natureza.

Rasgo o tecido que me asfixia com delicada violência e espreguiço-me, alongando o meu corpo, que descubro novo e diferente. Tenho asas revestidas de poeira fina e pele fofa e sedosa. Oh sim, tenho asas. Não mais rastejo por entre as folhas. Preciso de néctar, de ar, de luz. Consigo voar! As asas nas minhas costas estendem-se coloridas e reflectem a luz do Sol. Ouço o riso de uma criança que corre atrás de mim e rio-me também, enquanto subo em espiral por entre as árvores.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1663
Foto: Marco Dinis Santos

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