Avançar para o conteúdo principal

O Deus Mitra das Calças Rasgadas


ENCONTREI DEUS dentro de mim. Afinal não parece o Gandalf. Nem barba tem, o velhaco, excepto um punhado de pelitos manhosos que lhe escurecem o buço.

Dei com ele entre a minha terceira e a quarta vértebra, sentado a ler um livro virado de cabeça para baixo. Além de escrever direito por linhas tortas, também lê livros de pernas para o ar. Misteriosos são os desígnios do Senhor, carago.

O comboio da linha de Cascais ilumina-se momentaneamente com um clarão entre Caxias e Santo Amaro, enquanto o maluco que diz que viu Deus prossegue o relato. Os passageiros fingem distrair-se de olhos perdidos na paisagem que foge pelas janelas, mas todos o escutam com secreta e atenta curiosidade.

Usa calças de ganga rasgadas (não o maluco, mas Deus), com o tecido completamente gasto na zona genital devido ao roça-roça das coxas, e descaídas como se as tivesse esquecido de puxar ao sair do quarto-de-banho. O fumo do cigarro Marlboro Lights trepa o gorro de lã cheio de borbotos enfiado pela cabeça. Compreendo agora porque preferiu comunicar com Moisés através de uma sarça ardente.

Já O havia procurado nas nuvens, no coração da floresta, nos rituais pagãos e nos altares cristãos, no desfiar das contas do japamala, no desvario da luxúria. Quando desisti, ei-Lo!, todo este tempo dentro de mim, a rir-se com tosse-de-catarro-de-fumador da minha ingenuidade de crente bem-intencionado. Paragem em Algés, temperatura exterior: treze graus. Entra uma velhinha com tosse cavernosa.

Perguntei-lhe o porquê do dilúvio, da arca de Noé, das epidemias, das dez pragas do Egipto, do kizomba e de outras calamidades que têm atormentado a Humanidade desde o fiat fux. E porque não resolve de vez a querela com o Diabo e ficam amigos de novo. Ele expira o fumo do tabaco e sorri com indiferença de gato gordo.

Deus não quer saber de nós, amigos. Deus está-se marimbando. Agora percebo porque é que as vezes em que me comportei como um tipo decente, fui enganado por gente de má índole, mas quando me comporto como um sacana, safo-me boa parte das vezes. Deus sou eu.

Os olhos dos passageiros seguem o maluco-que-viu-Deus enquanto o vêem sair na estação de Santos. O comboio prossegue a marcha para o Cais do Sodré, mais sisudo e cinzento, agora sem Ele.

O arcano Valete de Espadas espicaça-nos com a ponta de um alfinete, atiçando-nos a astúcia e o estado de alerta, desafiando-nos a encontrar outras verdades dentro da verdade. No entanto, é sempre bom recordar que nada disso é suficiente se não aprendermos a compaixão e consideração pelos outros — e por nós próprios.
Deus O perdoe.

Hazel
Consultas em Oeiras e online
Tarot | Reiki | Regressão | Reprogramação Emocional | Terapia Multidimensional

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1662
foto: NeuPaddy, licença CC0
Cronista, Viajante no Tempo, Terapeuta, Taróloga, Tradutora, Professora.

Comentários