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Mortinho por Viver


ESTA VOSSA ESCRIBA encontrou um defunto a viver no seu roupeiro. Guardara-o há tanto tempo que me esqueci dele. Lá estava, bem direitinho como compete aos defuntos, com o expectável saco de plástico preto a envolvê-lo. Tal não poderia continuar, não senhor. Urgia ressuscitá-lo. Com efeito, assim aconteceu.

Fiz deslizar com delicadeza e solenidade o fecho do esquife, perdão, do saco preto. O referido defunto encontrava-se em perfeito estado de conservação. Nem um odor sinistro que acusasse o seu estado de abandono prolongado. Garanto-vos.

O falecido era um escorreito casaco preto-corvo que comprei há não-sei-quanto-tempo e custou três quartos da falange do dedo mindinho, para usar em dias de festa. Sóbrio, impecável e medonho, com uma espessa aplicação de pêlo sintético na gola, que lembrava um gato preto morto a aconchegar o pescoço.

Homessa, que me teria passado pela ideia. "Dias de festa", se isso lá é coisa que se pense. Então não é verdade que todos os dias são dias de festa?, e que todos os dias celebramos mais um dia de vida? Que a grande festa está em ter dias para contar, e em vivê-los – assim, viver, mesmo?

Por que esperamos, valha-nos Zeus, enquanto as traças ratam buracos nos nossos mais adorados e preciosos (ou abomináveis) atavios. Não há mais roupas de festa aqui em casa. Era o que faltava. Está decidido.

Tudo é para usufruir, mesmo que se gaste, ainda que se estrague, e até que eu própria me torne um defunto, não me permitirei guardar mais defuntos.

O arcano A Morte confronta-nos implacavelmente com tudo aquilo que morreu dentro de nós e à nossa volta. Até quando iremos esperar, aguardar, respirando o mesmo ar velho e pesado? 

Apalpai-vos (não uns aos outros, seus marotos, mas a vós mesmos)!, só para ter a certeza que estais vivos, palpitantes, pulsantes, febris de vida.

No fim de tudo, o que realmente importa é quão bem soubemos viver. 
Quão bem nos permitimos amar. 
Quão bem conseguimos ir embora, deixar tudo para trás, sacudir a poeira e começar de novo. 
Quão bem soubemos apreciar, saborear. 
Quão bem soubemos dar, a nós mesmos e aos outros.

Não há tempo a perder com o certo tornado incerto. Pensem o que quiserem. Façam o que quiserem. Mas façam o que vos fizer felizes.

A prescrutar o interior do roupeiro,

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1664
foto: licença CC0
Cronista, Viajante no Tempo, Terapeuta, Taróloga, Tradutora, Professora.

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