A Barriga da Serpente


Está escuro aqui em baixo. O ar tem um odor acre e insinuantemente venenoso. Circula nas minhas narinas como a aragem inofensiva do fim de tarde nas janelas esquecidas.

Aconchegada no interior da terra, desloco-me devagar, abro caminho por entre a teia de raízes repletas de bichos da terra que caminham com agilidade em incontáveis patinhas minúsculas pelo meu corpo.

As raízes convergem para um bolbo. O subsolo é, até onde consigo vislumbrar, um reino penumbral de silêncio, frescura e sossego.

A planta está a testar-me, mostrando de onde vem, como nasceu. Sem resistência, repúdio ou medo, observo com respeito e humildade. Fundo-me nela, torno-me também planta.

Tudo se dissolve e transforma.

O eco distante dos ícaros indica a direcção. Não distingo se sou eu que percorro o caminho, ou se é o caminho que me percorre a mim.

Uma auto-estrada de padrões longitudinais castanhos e esverdeados abre e desenrola-se formando um universo feito de pele de serpente. Mergulhada nesta dimensão, a temperatura corporal desce, toda a camada superficial da pele exsuda humidade. O meu corpo metamorfoseia-se numa estrutura fria, reptilínea.

Queres aprender com as serpentes? — sussurra, cuidadosa e inocente, quase infantil, uma pequenina serpente que se aproxima.

Sim — respondo.

— Virá uma grande serpente para te ensinar. Vais aprender com o veneno da serpente. Não deves ter medo dela, nem do veneno. O veneno irá ensinar. Confia no professor. Não esqueças. Confia... 

Após sibilar esta advertência, a delicada serpente desaparece deixando-me mergulhada nas trevas. Aguardo curiosa, mas nada vejo. Tento perceber onde estou.

Há um movimento subtil a embalar-me. 

Descubro-me dentro da grande serpente. As suas entranhas latejam, movem-se à minha volta. Viaja comigo dentro da barriga, aninhando-me num útero alongado onde a luz filtrada revela o veludo vermelho-escuro das paredes húmidas em sucos íntimos.

— O medo é uma resistência à aprendizagem — declara, numa voz que reconheço de imediato: a voz dos meus pensamentos. A minha voz mental — Não se interrompe o professor com perguntas. Observa o que ele te mostra. As perguntas são uma árvore. O professor está a mostrar a floresta inteira.

Dentro da serpente apenas vejo as suas entranhas, e nas suas entranhas posso ver tudo, em qualquer lugar físico ou temporal. Aceder aos arquivos do mundo. Ao Todo.

Poderia colocar as questões que quisesse, mas fazer perguntas é uma necessidade de controlo e condiciona os ensinamentos. Tudo é irrelevante. É preferível observar sem nada esperar, com a humildade da serpente que rasteja.

A serpente dobra-se sobre si mesma, dobrando, assim, o tempo. Une passado e futuro. Molda a linha contínua do tempo numa circunferência. Não há princípio nem fim. Mostra-me que a partir deste círculo acedo ao futuro através de sonhos e pressentimentos enviados pelo meu eu de adiante.

Cada mulher é uma serpente, recordo-o agora. Esta força primordial tem estado comigo desde sempre, mas esteve sempre esquecida.

Pego num caderno e tento anotar 
esta torrente de ensinamentos. 

A caligrafia afasta-se do papel, flutua e move-se numa coreografia cheia de floreados e arabescos executada por formigas de tinta preta que dançam suspensas no ar.

Sento-me para beber um pouco de água e tudo se transmuta. Torno-me enorme, uma montanha com árvores, plantas, nuvens, céu. Toda eu serenidade, frescura, vastidão, profundidade. Feminina, fecunda, em constante dádiva.

A interligação de passado, presente e futuro é a serpente que, na sua imortalidade e na capacidade de gerar vida, acede a todas as dimensões temporais devorando-se a si mesma sem se extinguir. A partir do seu interior, onde viajo, e através da minha natureza feminina, acedo aos presságios, sibilos do futuro.

Deito-me e fecho os olhos para descansar, com a sensação de não ter terminado a viagem. Entro novamente na frequência límpida e silenciosa dos ensinamentos da planta.

Um ovo. Estou dentro dele. Os músculos adutores comprimem-no, empurram com delicadeza, expelem-me de dentro da serpente. A casca abre.

Lambuzada pelos sucos do nascimento, deparo-me comigo, acabada de regressar, recém-renascida, dentro de um ninho de pássaros.

Sob os vapores do veneno da serpente,

Hazel
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Ilustração: Kellepics, licença CC0