Viagem à Terra do Diabo — Parte 1

sexta-feira, novembro 04, 2022

A TERRA DO DIABO fica muito longe, para lá dos montes. Poucos ousam ir lá, menos são os que sabem da sua existência, e mais raros os que lá moram.

Diz a lenda que uma vez por ano, na noite de 31 de Outubro, o Diabo anda à solta numa pacata e remota aldeia nortenha. Tudo fica virado do avesso. 

Celebram nessa noite a Festa da Cabra e do Canhoto, uma tradição pagã antiquíssima que sobrevive há mais de dois mil anos, o aclamado genuíno Samhain (Halloween) português, passando praticamente despercebido pelo resto do país.

Que inquietante tradição é esta, cheia de rituais misteriosos, onde a personagem principal é o Cabrão, bebe-se uma poção flamejante feita pelo Druida no caldeirão onde se esconjura o mau-olhado e afasta as trevas, e a lenha só arde se for roubada? E que diabo é isso do Canhoto? 

A vossa escriba, que nunca testemunhou este relicário vivo do misticismo antigo, vestiu a capa preta de investigação, botas altas e lupa, e foi indagar que coisas fixes se fazem para lá dos montes, que é como quem diz, em Cidões, Município de Vinhais, Trás-Os-Montes. Sobrevivi ao encontro com o Diabo e voltei para contar a história:

Chegámos duas horas antes da festa começar. Cidões é uma pequena aldeia silenciosa com casas de pedra adornadas com inúmeros vasinhos de flores, perdida na imensidão verdejante das serras. Tem apenas dezoito habitantes.

O Cabrão

Estava previsto chuva forte e trovoada, no entanto a força dos elementos tem as suas próprias vontades que andam de mão dada com a população, e o clima esteve inexplicavelmente ameno.

O Cabrão, colocado na entrada, dá as boas-vindas em todo o seu esplendor. [Sempre quis ter uma desculpa para escrever isto numa crónica e sair impune, oube lá. 😃] 

A imponente escultura de madeira com sete metros é queimada (pirilau incluído) ritualisticamente na enorme fogueira — o Canhoto — juntamente com a má sorte, o mau olhado e as dificuldades. Diz a lenda que esta lenha só arde se tiver sido roubada.

Marca-se, assim, a celebração do fim do ciclo agrário, despedindo-nos da metade clara do ano e entrando na metade escura e nas noites longas e frias. 


Os caldeirões cozinham a Cabra, mulher do Cabrão, dizem eles, enquanto repetem o antigo adágio que aprenderam com os seus avós: 

«Quem da Cabra comer e ao Canhoto se aquecer, 
um ano de muita sorte vai ter.»

Resolvemos sair da aldeia e respeitar o espaço e a privacidade dos cidanenses para se organizarem ao seu jeito sem se sentirem observados por dois forasteiros. Forasteiros, escrevi eu? Estava prestes a aprender a primeira grande lição desta incursão: No Norte, nunca é forasteiro aquele que vem por bem. É da terra também.

Travou repentinamente um carro ao nosso lado. A janela desceu:
— Andais perdidos?
— Estamos só a passear, viemos para a festa.
— Querem vir comigo ajudar a acender velas na ponte?

De um momento para o outro, com o Sol a morrer para dar lugar ao lusco-fusco, deslizámos para dentro do carro do desconhecido de olhos vivos e resplandecentes como os de uma criança. Havia um cajado com o que pareceu ser a cabeça do Diabo no banco de trás, assim como uma boa quantidade de velas vermelhas. Ele há horas do Diabo.

O Luís, é o seu nome, conduzia apressadamente pelas curvas e contracurvas que conhece desde que nasceu, e conversava como se nos conhecesse desde sempre. 

Contou que a festa é organizada por um grupo de amadores entusiásticos, filhos da terra, descendentes das gerações pagãs que ali habitaram. Não têm patrocínios, preferem preservar a identidade e a tradição. 

Unem-se esforços e dos seus próprios bolsos, com simplicidade e amor, compram tudo para proporcionar a quem visitar a aldeia nesta noite, uma celebração acolhedora e inesquecível, à boa e hospitaleira maneira do Norte.

Acendemos as velas vermelhas e distribuímo-las dos dois lados ao longo da pequena ponte que dá acesso a Cidões.

— Logo quando chegar a meia-noite venham aqui para o meio da ponte. Deixem-se ficar de pé, fechem os olhos e fiquem a sentir uma presença, uma energia, aqui com esta natureza toda à volta. Depois irão perceber. Façam as vossas preces e lancem os vossos pedidos ao rio.

Na voz do Luís, que não precisou de dar mais explicações, vinham as vozes de todos os antepassados que há mais séculos do que conseguimos sequer imaginar, dão continuidade a este misterioso ritual na ponte que liga Cidões ao resto do país, da mesma forma que o mundo terreno se liga ao mundo sobrenatural.

Eis que chega o bater das sete da noite. Escuridão total. A festa vai começar. 

(Continuação na próxima crónica: Viagem à Terra do Diabo - Parte 2)

Em terras do Diabo,

Hazel
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