Vai-se empurrando para longe da vista, na inconsciente e vã esperança de vir a ser engolido pelo triângulo das Bermudas que habita debaixo do mesmo tapete para onde varremos todos os nossos assuntos mal resolvidos - até ao dia em que recebemos a visita de alguém que, com olhos de lince e sem papas na língua, exclama:
- Macacos me mordam, de onde é que desencantaste essa fancaria?
E eis que a realidade se exibe sem pudores, desnuda e desafiadora perante o constrangimento dos nossos olhos.
Às vezes, sentimo-nos como esse bibelot, desprovido de valor e de serventia, nem mesmo a de enfeitar os móveis, vítima dos tempos que estão sempre a mudar e a exigir que se mude com eles.
Se resistimos à mudança, ou mudamos de forma desleal em relação a quem realmente somos, apenas podemos esperar mais insatisfação no futuro - são as regras do jogo.
Que resta, encolher-nos? Desculpar-nos, desfazer-nos em lamentos, tentar dissimular a feiúra (que nada mais é senão a falta de amor e de respeito por nós mesmos)?
Se foi isso que sempre fizemos - baixar-nos para não dar nas vistas, calar para não incomodar os outros - então, aceitámos desempenhar o papel de vítima, do indesejado cão de loiça dos olhos tristes, desprezado e esquecido no fundo de uma gaveta com cheiro a naftalina.
Até ao instante em que se faz luz e, num rasgo de auto-libertação, deixamos de curvar as costas para endireitá-las com a mesma fibra e tenacidade de um girassol que, durante a sua vida inteira, todos os dias se recusa a murchar e se vira em direcção ao Sol.
Damos um passo em frente e deixamos de andar a marcar passo, ou a seguir os passos dos outros.
O arcano Julgamento, que se repete após ter saído na edição de 25 de Fevereiro, volta a confrontar-nos com aquilo que ainda está desarrumado na nossa vida, para que o arrumemos de vez e possamos finalmente afirmar, altivos e seguros:
- Sou um cão de loiça, e tenho muito orgulho nisso!
Coloquemos o recém reconciliado bibelot em cima da televisão, numa assumida ode ao mau gosto feliz, genuíno e livre, por oposição ao bom gosto impessoal, submisso e sem voz própria. Ou deitemo-lo fora de uma vez por todas. Mudar é bom, quando mudamos para aquilo que sempre quisemos ser.
Hazel
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, 10 Março
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