Foto: Flóra Borsi
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Convencidos que não conseguíamos voar, cortámos as pontas das próprias asas e enclausurámo-nos numa gaiola pequena. Habituámo-nos a ir vivendo por compartimentos, passando a maior parte do tempo a fazer algo que não nos apaixona, resignados, conformados - domesticados. Somos devolvidos a nós mesmos no fim do dia vampirizados, sem pingo de força anímica pelo esforço de remarmos continuamente contra a maré.
Tem de ser assim. Não há alternativa; se a há, não há tempo para procurá-la.
Vive-se entre a espada e a parede e, ou se culpa a espada, ou se culpa a parede. É mais fácil sentirmos pena de nós mesmos, vítimas dos descompassos e das contravoltas da vida, impotentes perante o vilão que nos subjuga.Aguardamos por um Messias, um benemérito que reconheça o quão especiais e merecedores somos. Que nos compense - e recompense - por tudo o que já passámos. Esperamos permanentemente por uma indemnização divina que nunca chega, porque Deus anda distraído.
Ansiamos pelo subsídio de férias que irá finalmente salvar isto tudo. Por uma proposta irrecusável de emprego num local com vista para o mar e chão alcatifado - mas sem ácaros. Por um grande amor montado num cavalo branco de crina longa e resplandecente, disposto a fervorosos actos de loucura que envolvam declamações, serenatas à chuva e valsas dançadas na Rua Serpa Pinto indiferentes aos olhares embevecidos dos transeuntes. E aguentamos. Ele há-de chegar. Só mais um esforço.
Os anos passam e tu aguentas. Espera. Um dia vais conseguir. Aguenta. Há-de chegar a tua vez. Quem sabe se não será já amanhã, ou na semana que vem.
Toc, toc. Eis que o destino eventualmente nos bate à porta:
“Eu vim para avisar que não vem ninguém.”Ora bolas. Levamos com o calendário mesmo em cheio na cara e tomamos consciência que passámos a maior parte da vida a apequenar-nos, sentindo-nos incapazes, impotentes, castrados. Culpámos os outros pelos nossos fracassos e frustrações, quando, afinal, esse vilão que nos impede de ser livres e felizes é o nosso próprio medo, alimentado pela falsa crença de que há-de vir algum herói para nos dar a mão. Se heróis houvesse, o mais certo seria que nos dessem uma palmada admoestatória na mão que estendemos. Seria uma humilhação. Sorte a nossa que eles só existem nas histórias.
Esta semana, o arcano 8 de Espadas surge como um rasgo brusco de lucidez para informar-nos que se é de um herói que precisamos, teremos de ser nós a desempenhar esse papel. Se queremos ser livres, sejamos. Se queremos ser amados, procuremos a quem amar. Se queremos ser fortes, façamos força até que nos saltem as veias nas têmporas. Se queremos ser respeitados, respeitemo-nos primeiro a nós mesmos, estabelecendo limites para aquilo que consideramos aceitável – e sejamos coerentes com os mesmos.
Não vem ninguém. Estamos mesmo por nossa conta. As penas que cortámos voltam a crescer porque está na nossa natureza estender as asas e voar. É esse o nosso propósito de vida. Podemos sair a qualquer momento da gaiola onde nos enclausurámos se vencermos o medo de arriscar, de aprender, de transformar, de mudar por dentro e por fora. Não existem heróis, mas também não existem vilões. São todos personagens criadas por nós, autores heroicos e avilanados desta história.
Hazel
Hazel
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, 2 Junho
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