Eram cinco da tarde e o Sol espraiava-se pelo chão da sala de aulas, inundando-a de um mar de luz dourada e idílica que contrastava com o meu estado de espírito carrancudo.
Não tinha mais de catorze anos e o mundo estava contra mim. O professor de trabalhos manuais fora buscar grosas para limar os pedaços de madeira que todos tínhamos terminado de serrar. Naquele momento, não havia farpas nem arestas mais contundentes que as que me foram dirigidas.
O David, um rapaz com borbulhas na cara, igual a tantos outros da sua idade, fixou os olhos em mim e voltou lançar as mesmas piadas que provocavam o riso da turma inteira, tornando-me alvo de chacota. Na época, a palavra bullying era desconhecida em Portugal. Os professores fingiam que não viam o que se passava. Quando eram interpelados sobre o assunto, recambiavam o aluno queixoso para o conselho directivo que, por sua vez, nada fazia. Limitavam-se a dizer para não ligar. Ora, um ano lectivo são cerca de 200 dias - a tentar “não ligar”.
Naquela tarde, foi a gota de água.
Não deu para aguentar mais. Não era justo; eu nunca tinha humilhado ninguém. Era calada, tímida, apagada. Não dava nas vistas. Tudo o que queria era poder ser invisível. A sua voz estridente mais uma vez bateu na ferida que já estava demasiado massacrada para me importar com o que ele pudesse dizer ou fazer a seguir.
Cala-te!, disse-lhe, e, pela primeira vez, a minha mão levantou-se instintivamente indo espalmar-se a grande velocidade nas borbulhas cheias de pus do bully. Ele devolveu-me a bofetada, surpreendido, mas ainda a rir-se.
Insuflada de indignação, num acto reflexo, eu, que jamais tinha batido em ninguém mas já tinha visto todos os filmes de acção do Bruce Willis, fechei a mão com força e disparei um soco em cheio no maxilar do tal David, que rapidamente se afastou com o rosto tapado pelas mãos - jamais saberei se escondido pela dor, se pela vergonha da gargalhada geral que agora lhe era dirigida.
O professor “não viu”; estava — convenientemente — virado de costas a distribuir as limas e grosas pelas mesas. O imberbe nunca mais se meteu comigo. Intimamente, senti-me satisfeita por ter recuperado o respeito e dignidade e por ter socado o meu colega - admito sem orgulho. Mas quando vi algumas lágrimas contrariadas a espreitarem-lhe no canto dos olhos, senti-me desconfortável e culpada. Como se eu tivesse sido uma má pessoa, capaz de um acto de selvageria. Contudo, dadas as circunstâncias, não me restou alternativa.
Desconheço em que tipo de pessoa o David se terá hoje tornado, mas não lhe guardo ressentimento. Na verdade, ele foi um professor para mim; permitiu-me aprender que ninguém tem de assumir o papel de vítima nas mãos dos outros; que somos bem mais fortes do que imaginamos - especialmente quando estamos furiosos; e que pessoas bem intencionadas podem ter de tomar atitudes drásticas e negativas para evitar danos maiores. Especialmente, quando as únicas opções são levar ou bater. Mesmo assim, em algumas ocasiões, já esqueci estas lições, que foram relembradas por outros “Davids”.
O arcano Cinco de Espadas leva-nos a reflectir sobre a necessidade de controlar os impulsos, de forma a tomar as decisões mais sensatas que nos for possível, tentando deixar um rasto mínimo de danos e de perdas pelo caminho. Sejamos o elemento apaziguador, até onde nos permitirem. Na impossibilidade de sê-lo, podemos sempre dar um soco - na mesa.
Hazel
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1593
foto: Anne Taintor
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