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A-Das-Três-Mamas


Os meus olhos curiosos esgueiravam-se sorrateiramente como um gato vadio pelo muro caiado do seu quintal. Às vezes, via-a de relance. Bruta, carrancuda, zangada com o mundo e todos os seus habitantes — em particular, os que moravam perto de si. A língua da vizinhança era viperina. Cochichavam as alcoviteiras à boca pequena que a antipática mulher tinha três mamas.

Ninguém gostava dela. No percurso desde a escola até casa, era-me inevitável desviar o olhar, ainda não domado pela hipocrisia dissimulada das conveniências sociais. A volumosa e rotunda senhora de buço escuro e sobrolho carregado ignorava-me sempre. O nome da rua onde morava fora esquecido por todos, ainda que permanecesse legível na placa de mármore encardida pela passagem do tempo. Para aquela gente, era “a rua da-das-três-mamas”.

Estariam em fila? Será que colocava a terceira arrumada junto com a da direita no soutien, ou com a da esquerda? Ou iria alternando? Seriam todas do mesmo tamanho? A minha curiosidade era desprovida de leviandade, mas crua e sincera.

A boa mulher criava galinhas e vendia ovos, mas as vizinhas deixaram de lhos comprar, porque, enfim, ela tinha três mamas e ninguém gostava disso. Talvez tivessem medo que a mama extra fosse contagiosa e se pudesse pegar através dos ovos. Nesse ano, falecia o António Variações de uma doença então desconhecida, e as pessoas andavam acometidas por medos medievais.

Ainda gaiata demais para ter tido tempo de aprender a palavra preconceito, mas já uma observadora silenciosa, interiormente sentia que era errado o azedume das pessoas. Creio que gostava da intrigante senhora porque era solitária e forte, uma espécie de heroína em terra de vilões que, em vez de capa e espada, tinha uma mama extra.

Compreendia, ainda que de forma inconsciente, a sua atitude defensiva, e não tive dificuldade em discernir que o mundo pode ser um lugar cruel sem razão plausível — alguma vez a haverá? — e que as pessoas se podem tornar velhacas umas para as outras, não porque as outras o mereçam, mas porque precisam de alguém vulnerável em quem aliviar os seus amargores.

Recordo-a por oposição às mulheres actuais que vêem o mundo sob um longo e insinuante toldo de extensão de pestanas, agarram a vida com unhas de gel e sentem o vento através do cabelo alisado a ferro quente sem que este se despenteie, permanecendo impecavelmente alinhado. Espartilhadas dentro de cintas adelgaçantes como bonecas saídas de uma linha de montagem concebida para lhes remover a identidade. Perfeitas, idênticas, sem poesia.

O arcano Cinco de Paus leva-nos a observar a celeridade com que nos revoltamos com os outros quando são desagradáveis connosco, sem fazer um esforço para perceber os seus motivos. É certo que ninguém tem o direito de maltratar outros porque a vida lhe foi ingrata, contudo, se devolvemos bílis a quem no-la oferece, acabamos por tornar-nos iguais ou mesmo piores que o alvo da nossa censura, alimentando um ciclo destrutivo que nunca mais termina.

Recordo a-das-três-mamas com respeito e nostalgia. Sinto-me humilde perante uma mulher que aguentou com dignidade a crueza de uma vida inteira de marginalização. A fealdade não existe quando é amada. Torna-se um poema triste, doce e belo. Ainda que escrito em prosa.

Hazel
Consultas em Oeiras e online
Tarot | Reiki | Regressão | Reprogramação Emocional | Terapia Multidimensional

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1599
Foto: Miguel Pires da Rosa, licença CC2.0
Cronista, Viajante no Tempo, Terapeuta, Taróloga, Tradutora, Professora.

Comentários

Bisonte Lilás disse…
A verdade, por mais nua e crua que se possa apresentar, será sempre mais bonita que a mentira fabricada.
Porém, enquanto o medo do desconhecido continuar a alimentar o escárnio e mal-dizer, saberemos que há ainda um longo caminho a percorrer.
Um texto que é vida, um texto que tem quase de tudo: Humor, mensagem, mistério, crueldade, compaixão, ingenuidade, curiosidade... e até uma mama extra! Quem dera à perna extra do fiambre, ser alvo de uma rábula deste calibre!
Parabéns por este belo texto, Hazel, que demonstra bem onde já vais no teu caminho.
Muitas graças pelo teu generoso comentário, lendário Bisonte Lilás! :)