Uma gota de água gelada escorria lentamente ao longo do copo alto de vidro.
Aníbal, de bigode negro retorcido, ria-se com gosto e semicerrava os olhos de mafarrico com as piadas atrevidas da menina Ivone; baixinha, roliça, de vestido rodado com flores estampadas e cabelo castanho, era a graça em pessoa.
Ai menina Ivone, menina Ivone, você tira-me do sério, ronronava Aníbal. Ela ria-se.
As velhinhas na mesa ao lado abanavam os leques com indignação ante a pouca-vergonha que ali ia, aos olhos de todos, espalhando no ar uma nuvem de cheiro a naftalina e a perfume que já passou o prazo de validade.
Os dois cubos de gelo ficaram a dançar em espirais no copo de Ginger Ale, bebido até meio. De mão dada e passo apressado, Aníbal do bigodinho retorcido e a menina Ivone saíram sem olhar para trás, movidos pelo arrebatamento que urge ser saciado.
Um dos leques inquisidores caiu ao chão, fazendo o empregado tropeçar quando se aproximou da mesa para conferir se a conta foi paga. As marcas de batom rosa-quente riam-se provocadoras no guardanapo abandonado.
Ai Aníbal. Ai menina Ivone. Os ais sucediam-se à medida que a roupa lhes ia desaparecendo dos corpos e os dois se entrelaçavam no sofá da sala, aconchegados pela colcha de patchwork onde se manteve enroscado o gato Tareco, que viu, aos solavancos, tudo o que a natureza tem de mais cru, belo e escandaloso.
O candeeiro no tecto da vizinha de baixo, viúva e muito religiosa, dançava de um lado para o outro. Benzeu-se enquanto suspirou de saudades do falecido, que nunca lhe faltou nos deveres matrimoniais, apesar de ter a mania das limpezas e uma obsessão por números ímpares. Sabia a abençoada senhora que era sempre uma, três ou, em dias de festa, cinco vezes.
No andar de cima, o vestido da menina Ivone havia voado sobre o abat-jour de franjas, as calças de Aníbal jaziam no chão e os dois tinham percorrido todo o glorioso caminho desde a entrada até às catacumbas da existência humana.
— Sai da frente! Olha para este, deve ter a mania que é taxista em Lisboa.
— Com licença, deixem passar, se faz favor.
— Olha lá, eu estava primeiro, julgas que és mais esperto que os outros?
O espermatozóide mais rápido passou à frente de todos porque não parou para perder tempo a discutir.
Trinta anos depois, Frederico — Fred para os amigos — o espermatozoide-feito-homem, dirigia o seu próprio negócio, uma startup hipster na área das telecomunicações.
Aníbal deixara de usar bigode, mas mantinha o mesmo olhar malandro. A menina Ivone, agora de cabelo grisalho e curto, passava as tardes a fazer colchas de patchwork que vendia nas feiras de artesanato por bom dinheiro. Todos eles foram o espermatozóide mais veloz, o vitorioso.
O arcano Seis de Paus recorda-nos o mais simples e bem guardado segredo para vencer todos os problemas, batalhas e corridas: não perder tempo a discutir ninharias. Seguir sempre em frente. Nunca olhar para trás.
Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1608
foto: Nat Farbman
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