Os carros colam-se uns aos outros numa longa e fumegante serpente de chapa e vidros eléctricos ali mesmo à saída do bairro. Saem pela direita os que apanham a auto-estrada, fazem pisca para a esquerda os que seguem pela Marginal.
Estão todos parados agora; vejo alguns a enfiar o dedo no nariz, outros a tirar as remelas dos olhos, lacrimosos com a luz dura e cortante da manhã; outros ainda, a perscrutar o nada, suspensos no vazio existencial para onde nos atiram as filas de trânsito.
Estendem-se alguns olhares conformado-entediados no passeio de calçada onde caminha em passo ligeiro, como se estivesse prestes a fazer uma travessura, a vizinha do prédio ao lado do meu. Velhinha, franzina e de cabelo ralo e escuro, sempre de sorriso doce e olhos ladinos. Mora sozinha, nunca aceita boleias.
O ronronar do ralenti dos motores é interrompido pelo inusitado chiado de metal das rodas do seu carro-saco de ir ao supermercado. Não sei se é ela que leva o carro, se o carro que a leva a ela.
— Olá, menina.
— Boa tarde, menina.
— Bom dia, menina.
— Adeus, menina.
A voz assenta-lhe como uma luva: baixa e matreira, mas cheia de genica.
Não se passa nada. É apenas a velhinha fura-vidas a passar em compasso certo à hora que os pássaros alisam as penas e se ouvem os passos das primeiras crianças a caminho da escola. Os ocupantes da gigante serpente de chapa poluente carregam na buzinha como quem estala um chicote para atiçar os da frente a andar.
Ficamos a vê-la ir embora pela rua fora, sem nunca parar, sem jamais abrandar. Talvez seja mesmo o carro-saco de tecido axadrezado que a leva, movido por uma força desconhecida, como um cão fiel que fez o mesmo percurso mais vezes do que se consegue lembrar.
Descobri-lhe o segredo no outro dia, quando a vi passar com o carro-saco mal fechado. Olhei de soslaio e deliciei-me ao descobrir que não são compras que ela transporta lá dentro. O carro-saco vai cheio de vida. Por isso, sei que a velhinha ladina vai viver para sempre — ou até arrumar o carro-saco e se esquecer de onde o deixou.
O arcano O Carro inspira-nos a não ficar parados atrás dos outros como um autómato que é conduzido por alguém. É tempo de encher o nosso carro-saco de vida e seguir-lhe o encalço. Mais do que seguir, perseguir. Com ardor e determinação. Quatro-piscas ligados!, este veículo vai sair do tracejado da estrada para fazer uma manobra inesperada.
Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1651
Foto: licença CC0
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