SEMPRE ME INTRIGARAM aquelas castanhas engelhadas, mais velhas do que eu e que nunca ganhavam bicho, no fundo das gavetas da roupa.
É por causa das bruxas, dizia sem mais esclarecimentos a minha mãe. Lá em casa, ninguém gostava de bruxas. Pantominices!, É tudo uma pantominice, saía-se a minha avó enquanto compunha o cordão de ouro ao pescoço. Tinha mais de cem anos (não a minha avó, mas o cordão), e chegava até aos pés se ela não lhe desse as habituais três ou quatro voltas, o que não era caso para espanto, pois tinha, como se dizia, nascido nos dias pequenos.
O seu olhar verde-aguarelado, esbatido pela idade, fixou-se num ponto suspenso no ar, como se observasse o fio invisível do tempo. Toda a sua expressão se suavizou, parecendo readquirir o viço dos vinte anos, vividos em Vila Boim, ali mesmo à beirinha do país, onde a pronúncia castelhana se mistura com a portuguesa como as águas de dois rios que se encontram:
O CRIME
Alguém lhe entrara em casa durante a noite e furtou o cordão de ouro. Não valia a pena ir à Polícia, que nada fazia nestas situações, naquela época e local.
Alguém lhe entrara em casa durante a noite e furtou o cordão de ouro. Não valia a pena ir à Polícia, que nada fazia nestas situações, naquela época e local.
A DECISÃO
Foi à bruxa. Que lia o futuro em cartas de jogar ou com uma agulha pendurada em linha de coser; tirava o quebranto e o mau-olhado; fazia purgas e curava o bucho-virado e outras maleitas que os médicos não conseguiam tratar. A minha avó não acreditava nela, nem gostava dela, mas precisava dela. Portanto, meteu-se a caminho sem contar nada a ninguém. Como todos os que a procuravam.
A BRUXA
A mulher versada nas artes misteriosas recebeu-a numa sala sinistra e mal iluminada, com lamparinas acesas, santinhos e um previsível cheiro a arruda queimada. Deu-lhe uma oração para recuperar objectos roubados escrita num farrapo de papel e as seguintes indicações: dizê-la ab-so-lu-ta-men-te todos os dias e em seguida estar «atenta aos sinais».
UM ANO DEPOIS
Passou-se cerca de um ano sem que a minha avó desistisse. De tanto ler a oração, acabou por memorizá-la. Transcrevo-a tal como me foi transmitida, sem alterações, imaginando que pândega seria se todos os portugueses a lessem diariamente no intuito de recuperar o tanto que vai para impostos e taxas bancárias:
A ORAÇÃO
«Ó almas do Purgatório, eu com nove tenho mistério, três dos enforcados, três dos mal-sentenciados, três da morte a ferro frio, para que todos os três, os seis, os nove, vão ter ao coração dessa pessoa que me tirou (nome do objecto roubado), para que não possa estar, nem dormir, nem descansar. Se as almas assim fizerem, eu um terço lhes vou rezar.»
A RESOLUÇÃO
Depois da ladainha, a minha avó (que nessa época não era ainda avó nem mãe) ia para o quintal apanhar a aragem fresca do lusco-fusco alentejano enquanto atentava aos "sinais”.
Na rua, as pessoas regressavam do trabalho e ela ia escutando fragmentos soltos de conversas aleatórias que se uniam como um puzzle sobrenatural, dando-lhe pistas que acabariam por guiá-la até ao cobiçado cordão. Este acabou por regressar às suas mãos e foi dela até ao último dia da sua vida.
O arcano Dez de Ouros recorda-nos que o que é nosso por direito, e que verdadeiramente nos está destinado, a nós retornará no devido tempo. Excepto os impostos e taxas bancárias, que é que se há-de fazer.
O Universo encontra sempre forma de repor o equilíbrio, acertar contas e arrumar a casa.
E tudo o que escrevi nesta crónica realmente aconteceu.
Hazel
Foi à bruxa. Que lia o futuro em cartas de jogar ou com uma agulha pendurada em linha de coser; tirava o quebranto e o mau-olhado; fazia purgas e curava o bucho-virado e outras maleitas que os médicos não conseguiam tratar. A minha avó não acreditava nela, nem gostava dela, mas precisava dela. Portanto, meteu-se a caminho sem contar nada a ninguém. Como todos os que a procuravam.
A BRUXA
A mulher versada nas artes misteriosas recebeu-a numa sala sinistra e mal iluminada, com lamparinas acesas, santinhos e um previsível cheiro a arruda queimada. Deu-lhe uma oração para recuperar objectos roubados escrita num farrapo de papel e as seguintes indicações: dizê-la ab-so-lu-ta-men-te todos os dias e em seguida estar «atenta aos sinais».
UM ANO DEPOIS
Passou-se cerca de um ano sem que a minha avó desistisse. De tanto ler a oração, acabou por memorizá-la. Transcrevo-a tal como me foi transmitida, sem alterações, imaginando que pândega seria se todos os portugueses a lessem diariamente no intuito de recuperar o tanto que vai para impostos e taxas bancárias:
A ORAÇÃO
«Ó almas do Purgatório, eu com nove tenho mistério, três dos enforcados, três dos mal-sentenciados, três da morte a ferro frio, para que todos os três, os seis, os nove, vão ter ao coração dessa pessoa que me tirou (nome do objecto roubado), para que não possa estar, nem dormir, nem descansar. Se as almas assim fizerem, eu um terço lhes vou rezar.»
A RESOLUÇÃO
Depois da ladainha, a minha avó (que nessa época não era ainda avó nem mãe) ia para o quintal apanhar a aragem fresca do lusco-fusco alentejano enquanto atentava aos "sinais”.
Na rua, as pessoas regressavam do trabalho e ela ia escutando fragmentos soltos de conversas aleatórias que se uniam como um puzzle sobrenatural, dando-lhe pistas que acabariam por guiá-la até ao cobiçado cordão. Este acabou por regressar às suas mãos e foi dela até ao último dia da sua vida.
O arcano Dez de Ouros recorda-nos que o que é nosso por direito, e que verdadeiramente nos está destinado, a nós retornará no devido tempo. Excepto os impostos e taxas bancárias, que é que se há-de fazer.
O Universo encontra sempre forma de repor o equilíbrio, acertar contas e arrumar a casa.
E tudo o que escrevi nesta crónica realmente aconteceu.
Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1654
foto: smokefish, licença CC0
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