ERA UMA VEZ uma bela princesa que vivia numa torre de apartamentos remodelados ali para os lados das florestas luxuriantes de Mem Martins, mesmo antes de chegar a Sintra. Bela, é como quem diz; a voz de bagaço, o buço junto aos cantos dos lábios, o acne, as olheiras profundas e os dentes podres dos tempos da heroína não a deixavam ser muito bem-apessoada. Mas era a princesa de lá da rua, isso era.
Bela – diminutivo de Belarmina – suspirava por um mancebo escorreito da Amadora, que trabalhava na loja de reparação de telemóveis do Centro Comercial Babilónia.
Sonhava com o dia em que ele apanhasse a IC19 montado na acelera de cromados reluzentes e viesse salvá-la da reclusão da sua torre húmida, solitária e assombrada pelo fantasma da vizinha de cima (que ainda não se tinha finado, mas matava-lhe a paciência a arrastar de móveis à noite).
Para seu desgosto, o gaibéu gostava de outra, uma flausina qualquer do Estoril, de cabelo-alisado-a-ferro-quente e unhas de gel cintilantes, espetadas como garras de gata assanhada. Cansada de esperar por um salvador que nunca chegava, fez uma longa trança com os seus cabelos e atirou-a pela janela.
Os transeuntes desviaram-se repudiados com o cheiro nauseabundo das melenas que não viam água há anos, onde os piolhos já tinham construído uma autêntica metrópole com arranha-céus, vias rápidas e edifícios com elevadores panorâmicos que iam dar à parte de trás das suas orelhas.
Vencida pela indiferença cruel do mundo ao seu sofrimento, atirou-se para a cama e enterrou o rosto no travesseiro. Havia de chorar até morrer. Ou até lhe caírem os olhos. Ou até o ranho lhe começar a entrar na boca.
Foi a terceira: quando as ranhocas lhe começaram a empastar o buço, sentou-se na beira da cama e mergulhou as mãos nos bolsos do vestido.
Encontrou um pente desdentado, um isqueiro Bic sem gás e um lenço, que puxou com a ponta dos dedos. Ouviu-se o som metálico de algo a cair no chão. Uma chave! — tinha estado sempre no seu bolso.
Limpou o ranho, rodou a chave na fechadura e abandonou a torre onde se tinha fechado a si mesma, dando por findo o conto.
O arcano Oito de Espadas surge-nos com a clareza fria de uma mão que toca o próprio reflexo no espelho, mostrando-nos em simultâneo a vítima e o autor. De pouco adianta esperar por dias melhores, por alguém, por uma sorte que nos saia, pelo raio que nos parta, o diabo que nos carregue ou um deus que nos acuda.
Não vem ninguém. Porque ninguém nos pode salvar de nós mesmos.
Quando as circunstâncias da vida nos encurralam a um canto, só nos resta sair pelos próprios pés. Entre arriscar tomar uma decisão, ou permanecer insatisfeito por uma não-decisão, é preferível deixar de ser uma princesa, limpar o ranho — e sair da torre.
Pela rua fora,
Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1653
Foto: licença CC0
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