A louca da camisa-de-dormir todos os dias faz o mesmo percurso que se cruza com o meu, ora de manhã, ora pela tardinha. Contemplo a visão onírica da senhora de meia-idade que atravessa a estrada sem pressa, a chinelar nas suas chanatas de quarto com borlas emplumadas em seda rosa-pétala, cabelos de nuvem e às vezes um robe puído sobre a camisa-de-dormir comprida.
Há no seu semblante triste a beleza silenciosamente desesperada e suspensa no tempo de uma mulher que naufragou e não pára de nadar mesmo sem mar entre as vagas dos dias que se sucedem — sem nunca chegar a terra.
Não usa chapéu para se proteger da chuva — parece mesmo não a sentir. Caminha de olhos fixos no vazio e mãos caídas. Vejo nela o avesso de nós, que saímos de casa vestidos, aprumados, ordenados e perfumados.
Ou talvez sejamos nós o avesso dela.
Quando regressamos a casa, libertamo-nos dos atavios sociais e vestimos a roupa-de-andar-por-casa, que costuma ser confortavelmente triste e gasta, às vezes tem nódoas que não saem, está debotada e pingona, mas somos incapazes de a deitar fora.
A roupa-de-andar-por-casa é o sorriso que esmorece pelo cansaço ou pelo enfado da rotina. A maquilhagem que cai desmaiada nas olheiras, os cabelos desalinhados, as unhas dos pés compridas, os chinelos velhos e um pouco — ou muito — fedorentos, que cheiram a casa, a conforto e a amparo.
A voz áspera do catarro, a rabugice do Domingo à noite, o ranho a espreitar das narinas dos gaiatos, as caretas que fazemos para o espelho quando vamos a caminho do duche pela manhã. A suposta ausência de beleza a que nos permitimos entregar — e onde repousamos — quando nos sentimos seguros e protegidos do olhar alheio.
É a verdade do que somos, com os nossos maus cheiros, pêlos que despontam bravios onde menos queremos, cabelos oleosos junto à raiz e aquele bocadinho de sujo debaixo das unhas — a crua humanidade que não nos atrevemos a partilhar senão com aqueles que sabemos que vão amar-nos por completo.
O arcano Sete de Espadas aponta-nos para as nossas roupas de andar-por-casa e de andar-na-rua, para as mentiras que contamos ao mundo e a nós mesmos. Todos mentimos. Até o mais honesto de nós. Porque se mostrássemos toda a verdade como ela é, seríamos para os outros uma louca em camisa-de-dormir.
Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1686
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