Uma crónica de merda


HÁ DOIS TIPOS DE PESSOAS no mundo. Os madrugadores, bem-dispostinhos, arrumadinhos e cheios de genica, que acordam ao raiar do dia, metem um café negro no bucho e estão prontos para tudo. O mundo é a sua ostra. Como os invejo.

E depois há os "classe B", onde eu me encaixo: 

Quando sabem que têm de se levantar muito cedo no dia seguinte, deitam-se sob pressão, ordenando ao corpo que adormeça depressa. E ele não adormece. Ficam a ver as horas passar como contas num colar, enquanto andam às voltas na cama.

Adormecem depois das três, o diabo do despertador toca às seis. E eles, colados à cama, que os agarra num abraço lânguido e poderosamente narcótico. Mais cinco minutos. Mais cinco minutos. Mais cinco minutos. Porra! Estou atrasada!

A pessoa levanta-se desnorteada, bêbeda de sono. Tem uma viagem de longo curso pela frente. Enfia um chinelo no pé e desiste de procurar o outro que se escondeu — toda a gente sabe que os desgraçados dos chinelos se escondem. Vai com um pé calçado e outro descalço, olhos remelosos, ligar o esquentador para tomar duche.

Só há tempo para duche, vestir, pegar nas malas e sair [corre, corre, corre, pá!].
Dois sacos ficam esquecidos. Já não há tempo para comer. 

"Estação de Oeiras"

Compra os bilhetes para o comboio e verifica que afinal ainda sobrou tempo. Dirige-se ao Café da estação e — pensando que pode fazer como os outros —, pede também um café.

Mal o café escorrega esófago abaixo, passa pelo estômago e vai directamente para os intestinos, isto tudo em linha recta, garanto-vos —, é nesse momento que a pessoa percebe que fez merda. Como fez. Ah, café dos infernos. Os intestinos contraem-se e dilatam-se com espasmos, como se tivesse despertado um monstro terrível, o Adamastor das Tripas.

"Vai passar. Só preciso de me sentar." O comboio chega, a pessoa senta-se e o monstro continua irrequieto. "Quero sair!", berra ele em fúria.

"Estação de Belém"

O monstro finalmente acalmou. A pessoa respira de alívio.

"Cais do Sodré"

Estação terminal. A pessoa levanta-se, e o monstro redesperta, mais feroz do que nunca. O meu reino por uma sanita. Ai Senhores, agora é que é.

Descobre amargamente que não existe casa-de-banho no metro do Cais do Sodré. Tem de se apanhar o elevador para a superfície e depois a tão desejada casa-de-banho, qual El Dorado, fica por trás do Pingo Doce. A distância é directamente proporcional ao desespero. Paga-se cinquenta cêntimos para entrar e ai se uma pessoa não tem os cinquenta cêntimos certos no porta-moedas. Nem quero imaginar.

O mundo é um lugar hostil para aqueles que procuram loucamente por uma casa-de-banho com a mesma angústia com que tentariam salvar a própria vida.

A casa-de-banho estava limpa. Havia papel higiénico e até piaçaba. Misericórdia.
Não há heróis nestes momentos. A pessoa teve até vontade de chorar.

De intestino limpo e ânimo renovado, há ainda o metro para apanhar e depois o comboio intercidades. Mais duas horas de viagem pela frente. 

O MALDITO CAFÉ-assassino que a pessoa julgava ter expelido até à última gota pelo orifício mais longe da boca manifesta-se agora no estômago. Oh Deuses. Ninguém merece. É como se o monstro tivesse deixado um filho que apanhou o elevador pelo esófago acima. Foram duas horas em que o delicado e feminino chapéu-de-palha que repousava no colo (da pessoa) esteve prestes a servir de saco de vómito.

"Estação Coimbra B"

"Senhoras e Senhores, estamos a chegar à Estação Coimbra B." 
Esteve quase para beijar o chão, a pessoa. Terra firme. 

O cérebro flutua no crânio, coloca os óculos escuros e o chapéu-de-palha que escapou por um milímetro, e promete solenemente nunca mais beber café em jejum às sete da manhã. Isso é para os outros. Arrumadinhos. Bem-dispostinhos.

A beber chá de lúcia-lima,

Hazel

A Lua chama pelas Bruxas

Segunda-feira é o dia da semana regido pela Lua e estamos sob uma Lua Cheia que está no seu expoente máximo (ainda que em Vazio de Curso até às 19:06).

Tudo é sentido com grande intensidade.
A Magia espalha-se silenciosamente pela Terra, como um manto.

Uns, não se apercebem de nada, embrenhados que estão no mundo da matéria.

Outros, escutam o chamado e páram as suas actividades mundanas para contemplar e saciar a avidez de Luz Branca.

Escrevi este pequeno texto esta semana, sob os raios dos últimos dias de Lua Crescente, e partilho-o para aqueles que quiserem falar com a Senhora da Magia, fazer pedidos, ou uma simples oferenda de incenso:

Senhora das vestes de madrepérola
Que reinas silenciosamente nos Céus
Envolve-me na tua Luz.

Preenche-me com a tua brancura
Concede-me a tua paz, a tua serenidade.

Dá-me a sabedoria do silêncio que atravessa todas as fases, 
Mesmo as de incerteza.

Abençoa-me com a clarividência que ofereces às escolhidas.
Para que eu saiba sempre. 
E mesmo quando não souber, 
Que o sinta no meu coração.

A 1ª hora nocturna regida pela Lua começa hoje às 22:22 e termina às 23:03 (hora de Lisboa).
Fica a proposta para este começo de semana.

No mundo da Lua,

Hazel

O lago do esquecimento


Debruçada sobre o lago do esquecimento, vejo tudo o que aconteceu e que irá acontecer, sem distinguir presente, passado ou futuro.

Correndo o risco de ficar presa neste transe hipnótico, preciso de perscrutar a negrura das águas e escutar o sussurro das vozes do tempo. Tudo o resto tem de esperar. Não sei quanto tempo; neste tempo fora do tempo, não há pressas, porque não se vai a lado algum.

Apenas se observa e se escuta. Parada, cristalizada, suspensa. O tempo que for necessário.

Nas margens do lago,



Prece antes de dormir


"Ó Graciosa Deusa
Ó Gracioso Deus

Agora entro no reino dos sonhos
Tecei uma teia protectora de Luz à minha volta

Protegei igualmente
o meu corpo adormecido e o meu espírito

Olhai por mim
até o Sol novamente governar a Terra

Ó Graciosa Deusa
Ó Gracioso Deus
Acompanhai-me durante a noite."


Scott Cunningham (adaptação)
Na teia de luz,

Hazel

Vou morar numa casa de férias

No outro dia, quando estava de rabo para o ar a proferir impropérios enquanto apanhava tralha que se espalha e acumula pelos cantos - quantos cantos tem uma casa? Apre! - tomei uma decisão importante: quero viver numa casa de férias.
Mas, assim, o ano inteiro.

Nas casas de férias, as pessoas só têm o que precisam, o essencial.

Agora é que finalmente percebi porque nos sentimos tão relaxados quando vamos para uma casa de férias...
... porque não há nada para arrumar!!

É tão óbvio (palmada na testa), como não percebi antes? Duh...
Foi preciso uma vida inteira de dona-de-casa desesperada para entender, foi? Foi.

Então, é isso. Decidi que vou viver numa casa de férias - que luxo! Uia!

Uma casa de férias sem tralha.
Sem gavetas que custam a fechar porque estão demasiado atafulhadas de roupa que nunca usamos, mas guardamos anos a fio à espera não-sei-de-quê.
Sem armários de cozinha que vomitam os tupperwares todos para cima de nós quando tentamos encaixar mais uma caixa como se fosse um jogo de Tetris.
Sem bibelots. Sem papelada. Sem merdinhas.

Vou mudar de casa sem ter de mudar de casa.

Depois das várias viagens que a vida me impôs, aprendi a desapegar-me do supérfluo. Objectos supérfluos, relações supérfluas, ocupações supérfluas...
Estou em processo de trocar raízes por asas.

Só quero ter o que realmente preciso e o que me faz sentir bem. Tão-simplesmente!

A riqueza de alguém não se conta pelos bens materiais que um dia acaba inevitavelmente por perder, mas pelos momentos felizes que se contabilizam - e ninguém nos pode roubar o que já vivemos. Por isso, não preciso de muitas tralhas!

E o que vou fazer com o que já não quero?, perguntais.
Aquilo que estiver danificado... lixo. O que puder ser útil a alguém, dou.
Outras coisas, entrego numa loja de artigos em 2ª mão - se forem vendidas, uso os dividendos para ir passear! Também mereço, ora.

Não sei quanto tempo vou demorar a conseguir chegar onde quero, mas sei que vou chegar lá, porque esta decisão partiu directamente do meu coração.

Agora, excusez moi, que vou tratar de transformar esta casa normal numa casa de férias.

De espanador na mão,


Hazel