Lição de anatomia


L. - Mamã, dói-me o peito. Já não consigo comer mais.
Hazel - O peito? Homessa! Mas em que sítio?
L. - Aqui, mamã.

Ele mostra, colocando a mão na barriga.

Hazel - Isso não é o peito, é a barriga. O peito é na zona das maminhas.
L. - Ai é nas maminhas? Então, a barriga é isto tudo das maminhas para baixo?
Hazel - Sim.
L. - Uau...!

Beijos anatómicos,



O silêncio é o guardião da paz de espírito.


Ontem, durante algumas horas, fechei as janelas todas, desliguei a música e o maior número possível de aparelhos eléctricos. E deixei-me ficar a escutar o Silêncio.

Bebi-o como quem deixa escorregar pela garganta um néctar macio feito de frutas que maturaram um Verão inteiro sob os raios dourados do Sol. Alimentei-me dele como um manjar dos Deuses. A minha alma foi nutrida deste vazio de sons, este deserto sonoro.

Escutei a minha própria respiração que, gradualmente, abrandou, assim como o bater do meu coração. O silêncio é branco, luminoso, leve, fresco, suave e inodoro.
Estou tão enamorada dele que hoje quero vê-lo de novo. Que os seus braços me abracem sem me prender e a sua voz fale comigo num sussurro mágico. Silenciosamente tua.

Shhhhh....,

Hazel

Setembro, tu que começas por S


Simplesmente, traz-me:

Silêncio, para que eu escute a minha voz interior.
Serenidade nos Sentimentos.
Sabedoria nas palavras.

Suavidade nos acontecimentos.
Sensibilidade na intuição.
Sândalo na cor dos meus cabelos.

Serenatas apaixonadas.
Segredos Sussurrados ao ouvido.
Simpatia que aconchega como um casaco de malha num dia frio.

Sopa de legumes.
Sorrisos cúmplices.
Suspiros de prazer.

Sol morno e dourado.
Sementes de alegria.
Sossego no decorrer dos dias.

Sinceramente,



Móveis com pó. E uma Vida a ser Vivida.


A poeira que repousa silenciosamente sobre os livros nas estantes e ao longo da superfície dos móveis não é um sinal de desmazelo. Não, não. Pelo contrário.

Ela mostra-nos que há algum tempo nada precisa de ser mudado, porque tudo está bem como está.

Mas, acima de tudo, está lá também para testemunhar a mais nobre forma de passagem do tempo: Vivendo a Vida. Sem desperdiçar tempo - a limpar o pó. Que sempre volta. E a vida não.

No meio dos livros empoeirados,

Uma crónica de merda


HÁ DOIS TIPOS DE PESSOAS no mundo. Os madrugadores, bem-dispostinhos, arrumadinhos e cheios de genica, que acordam ao raiar do dia, metem um café negro no bucho e estão prontos para tudo. O mundo é a sua ostra. Como os invejo.

E depois há os "classe B", onde eu me encaixo: 

Quando sabem que têm de se levantar muito cedo no dia seguinte, deitam-se sob pressão, ordenando ao corpo que adormeça depressa. E ele não adormece. Ficam a ver as horas passar como contas num colar, enquanto andam às voltas na cama.

Adormecem depois das três, o diabo do despertador toca às seis. E eles, colados à cama, que os agarra num abraço lânguido e poderosamente narcótico. Mais cinco minutos. Mais cinco minutos. Mais cinco minutos. Porra! Estou atrasada!

A pessoa levanta-se desnorteada, bêbeda de sono. Tem uma viagem de longo curso pela frente. Enfia um chinelo no pé e desiste de procurar o outro que se escondeu — toda a gente sabe que os desgraçados dos chinelos se escondem. Vai com um pé calçado e outro descalço, olhos remelosos, ligar o esquentador para tomar duche.

Só há tempo para duche, vestir, pegar nas malas e sair [corre, corre, corre, pá!].
Dois sacos ficam esquecidos. Já não há tempo para comer. 

"Estação de Oeiras"

Compra os bilhetes para o comboio e verifica que afinal ainda sobrou tempo. Dirige-se ao Café da estação e — pensando que pode fazer como os outros —, pede também um café.

Mal o café escorrega esófago abaixo, passa pelo estômago e vai directamente para os intestinos, isto tudo em linha recta, garanto-vos —, é nesse momento que a pessoa percebe que fez merda. Como fez. Ah, café dos infernos. Os intestinos contraem-se e dilatam-se com espasmos, como se tivesse despertado um monstro terrível, o Adamastor das Tripas.

"Vai passar. Só preciso de me sentar." O comboio chega, a pessoa senta-se e o monstro continua irrequieto. "Quero sair!", berra ele em fúria.

"Estação de Belém"

O monstro finalmente acalmou. A pessoa respira de alívio.

"Cais do Sodré"

Estação terminal. A pessoa levanta-se, e o monstro redesperta, mais feroz do que nunca. O meu reino por uma sanita. Ai Senhores, agora é que é.

Descobre amargamente que não existe casa-de-banho no metro do Cais do Sodré. Tem de se apanhar o elevador para a superfície e depois a tão desejada casa-de-banho, qual El Dorado, fica por trás do Pingo Doce. A distância é directamente proporcional ao desespero. Paga-se cinquenta cêntimos para entrar e ai se uma pessoa não tem os cinquenta cêntimos certos no porta-moedas. Nem quero imaginar.

O mundo é um lugar hostil para aqueles que procuram loucamente por uma casa-de-banho com a mesma angústia com que tentariam salvar a própria vida.

A casa-de-banho estava limpa. Havia papel higiénico e até piaçaba. Misericórdia.
Não há heróis nestes momentos. A pessoa teve até vontade de chorar.

De intestino limpo e ânimo renovado, há ainda o metro para apanhar e depois o comboio intercidades. Mais duas horas de viagem pela frente. 

O MALDITO CAFÉ-assassino que a pessoa julgava ter expelido até à última gota pelo orifício mais longe da boca manifesta-se agora no estômago. Oh Deuses. Ninguém merece. É como se o monstro tivesse deixado um filho que apanhou o elevador pelo esófago acima. Foram duas horas em que o delicado e feminino chapéu-de-palha que repousava no colo (da pessoa) esteve prestes a servir de saco de vómito.

"Estação Coimbra B"

"Senhoras e Senhores, estamos a chegar à Estação Coimbra B." 
Esteve quase para beijar o chão, a pessoa. Terra firme. 

O cérebro flutua no crânio, coloca os óculos escuros e o chapéu-de-palha que escapou por um milímetro, e promete solenemente nunca mais beber café em jejum às sete da manhã. Isso é para os outros. Arrumadinhos. Bem-dispostinhos.

A beber chá de lúcia-lima,

Hazel