Poção de Esquecimento


Após retiro prolongado, a (im)paciente da cama cinco agradece as visitas, as mensagens, as flores, os bolos doces sem açúcar, o envio de borboletas, os presentes, os convites e todo o afecto — que, sem dúvida, foi a mais regeneradora das panaceias.

Doutor Passarinho deixou-a ter alta com a advertência de que deverá prosseguir a dieta do tempo. Enquanto compõe o monóculo entre as penas e o bico amarelo-fogo, redige uma receita para levantar na botica hospitalar.

É-lhe entregue pelo boticário alado um frasco de líquido cor-de-musgo com a indicação "Poção de Esquecimento", que contém:

- Duas partes de novas experiências;
- Uma parte de medo diluída em duas de coragem;
- Um terço de excipiente vazio;
- Duas partes de contemplação do mundo (os sons, as luzes, as pessoas, os animais, as plantas, os edifícios, o céu);
- Uma parte de movimento físico, atendendo à máxima renascentista mens sana in corpore sano;
- Salpicos de audição apurada, para escutar a voz interior;
- Metade de amor-próprio, como elemento agregador dos restantes ingredientes.


«Agitar várias vezes ao dia para misturar bem o elixir. 
Tomar uma gota de manhã, de tarde e de noite até à cura completa.»

São-lhe restituídas roupas, sapatos, asas, caderno e lápis, para que volte a escrever.

Sentada numa paragem de autocarro, redige todo este texto no caderno que repousa no colo como um gatinho. Um desconhecido bem-parecido sorri-lhe. Ela retribui.

De asas estendidas em vôo panorâmico,

Hazel

Hospital de Corações


ACABEI DE INVENTAR  ESTE NOME. Quem está doente do corpo vai para o hospital “comum”, quem está doente da cabeça vai para o hospital psiquiátrico e quem está doente do coração vai para o Hospital de Corações.

É um edifício semelhante aos outros por fora, mas com pessoas mais simpáticas e cuidadosas. Todo o staff usa sapatinhos de lã, roupa colorida e também faz parte do equipamento um medidor de dores de coração em vez do vulgar estetoscópio. Neste serviço curam-se mágoas, angústias, tristezas e desgostos de amor.

Os corredores são forrados de algodão até ao tecto e o chão tem relva macia e perfumada. Nas enfermarias, os pássaros trazem gotas de madressilva no bico que vão depositando mililitro a mililitro nas feridas expostas. Aqui o Betadine não tem serventia.

Os pacientes magoados são aconchegados em lençóis de asa de pássaro e fecham os olhos durante muito tempo até se sentirem capazes de voltar a abri-los sem perigo de desidratação devido aos ribeiros que deles transbordam em águas contaminadas. É preciso limpar, secar, repousar e, acima de tudo, abrandar o ritmo dos batimentos cardíacos que cavalgam desenfreadamente pelos campos pedregosos da dor.

Na hora das refeições, serve-se tempo em modestos tabuleiros. Puré de tempo com escalopes de tempo, salada de tempo e, para beber, tempo espremido. Os pacientes não gostam do cardápio, mas é o único que realmente pode ajudar. A dieta do tempo, além de desinteressante e insípida, ainda tem a terrível desvantagem de ter de ser seguida durante muito tempo.

Não existe roupa para os pacientes no Hospital dos Corações. Andam nus, despojados de tudo o que possa causar ainda mais peso para além daquele que já transportam. Apenas as asas de pássaro servem de agasalho nas noites mais frias e solitárias, onde se ouve o eco do choro e o gemido da dor abafado nas almofadas. Mas há-de passar, tudo passa um dia, com a ajuda do Doutor Passarinho. Ei-lo a entrar agora no gabinete de medidor de dor de coração pendurado no bico para auscultar mais uma paciente que acabou de dar entrada.

Chama-se Hazel e vai ficar na cama cinco, junto à janela. Um bando de pássaros-enfermeiros faz-se acompanhar dos auxiliares em sapatinhos de lã para ajudar a recolher as águas que lhe escorrem dos olhos. A cura vai demorar. Submetida à dieta do tempo, a paciente debate-se e implora por uma anestesia geral ou a eutanásia, mas ambas lhe são recusadas. Terá de aguentar. Terá de conseguir.

O arcano Três de Espadas diz-nos que por muito que doa, um dia tudo acabará por passar. Quando? Não sei. Mas não pode haver tempestade que dure para sempre.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1688
foto: Comfreak, licença CC0

Para uns Anjo, para outros pior que Belzebú


Fugiram-me duas velas de casa. Tinha-as em cima da mesa de jantar, cada qual no seu castiçal, e desapareceram sem deixar pingo de cera nem de remorso. Corri atrás delas rua fora, mas no primeiro cruzamento virou uma para cada lado. As danadas. Voltei para casa de mãos a abanar.

Coloquei um anúncio no Encontra-me. Entre cães e gatos desaparecidos, lá estavam as minhas velas. Ambas brancas e simples, uma acesa e outra apagada. Ofereci alvíssaras a quem mas trouxesse de boa saúde e ainda por derreter.

Estas são velas especiais, têm de compreender. Velas que falam, que pensam, que têm opiniões e caprichos. Andaram desaparecidas durante vários dias e noites até finalmente dar com elas estafadas, caídas à porta de casa. A vizinha da frente levantou uma sobrancelha julgando que se tratasse de alguma reles feitiçaria, mas expliquei-lhe que “não, vizinha, isto são só as velhacas das minhas velas que me tinham fugido.”

Entraram de pavio tombado para a frente, receosas do ralhete que iriam levar. Encaixaram-se muito direitas e compenetradas nos castiçais enquanto viam puxar de uma cadeira para ouvir o que tinham a contar sobre a inusitada evasão.

Começou a acesa a falar. Vinha maravilhada. Por todas as ruas onde tinha passado, encontrou luz: reflectida nas montras das lojas, a cintilar nas paragens de autocarro, nos carros que circulavam na estrada; a dançar nos olhos das pessoas que cruzaram o seu caminho. Jamais imaginaria que houvesse tanta beleza no mundo, suspirava encantada.

Seguiu-se a apagada. Num suspiro profundo e tristíssimo, lamentou a malograda saída. Sentiu-se perdida, desajustada nas ruas afundadas em trevas. As pessoas eram obscuras e sinistras, tudo era desinteressante, escuro e vil. Nunca encontrou uma réstia de luz.

Homessa, que tontas, disse-lhes, enquanto fui buscar um espelho para colocar à frente dos castiçais, aquilo que viram foi uma projecção da vossa própria luz. Ou da ausência dela.

A acesa sorriu enternecida. Amolecida pelo calor inclinou-se para o lado e acendeu a companheira apagada que num segundo começou a irradiar luz, alívio e alegria. Prometeram não tornar a fugir.

Nós somos para os outros um reflexo daquilo que eles são. Para os detentores de luz, teremos sempre alguma luz e virtude. Para os mais sombrios, seremos vício e escuridão.

Aqueles que nos olham com bondade encontrá-la-ão também em nós; seremos anjos para esses — e piores que o belzebú para os outros. Deixá-los ver-nos com os olhos que têm, que importa lá isso. O arcano Rei de Paus inspira-nos a não parar de brilhar — e iluminar aqueles que se cruzam connosco.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1687
Imagem: licença CC0

A louca da camisa de dormir


A louca da camisa-de-dormir todos os dias faz o mesmo percurso que se cruza com o meu, ora de manhã, ora pela tardinha. Contemplo a visão onírica da senhora de meia-idade que atravessa a estrada sem pressa, a chinelar nas suas chanatas de quarto com borlas emplumadas em seda rosa-pétala, cabelos de nuvem e às vezes um robe puído sobre a camisa-de-dormir comprida.

Há no seu semblante triste a beleza silenciosamente desesperada e suspensa no tempo de uma mulher que naufragou e não pára de nadar mesmo sem mar entre as vagas dos dias que se sucedem — sem nunca chegar a terra.

Não usa chapéu para se proteger da chuva — parece mesmo não a sentir. Caminha de olhos fixos no vazio e mãos caídas. Vejo nela o avesso de nós, que saímos de casa vestidos, aprumados, ordenados e perfumados.

Ou talvez sejamos nós o avesso dela. 

Quando regressamos a casa, libertamo-nos dos atavios sociais e vestimos a roupa-de-andar-por-casa, que costuma ser confortavelmente triste e gasta, às vezes tem nódoas que não saem, está debotada e pingona, mas somos incapazes de a deitar fora.

A roupa-de-andar-por-casa é o sorriso que esmorece pelo cansaço ou pelo enfado da rotina. A maquilhagem que cai desmaiada nas olheiras, os cabelos desalinhados, as unhas dos pés compridas, os chinelos velhos e um pouco — ou muito — fedorentos, que cheiram a casa, a conforto e a amparo.

A voz áspera do catarro, a rabugice do Domingo à noite, o ranho a espreitar das narinas dos gaiatos, as caretas que fazemos para o espelho quando vamos a caminho do duche pela manhã. A suposta ausência de beleza a que nos permitimos entregar — e onde repousamos — quando nos sentimos seguros e protegidos do olhar alheio.

É a verdade do que somos, com os nossos maus cheiros, pêlos que despontam bravios onde menos queremos, cabelos oleosos junto à raiz e aquele bocadinho de sujo debaixo das unhas — a crua humanidade que não nos atrevemos a partilhar senão com aqueles que sabemos que vão amar-nos por completo.

O arcano Sete de Espadas aponta-nos para as nossas roupas de andar-por-casa e de andar-na-rua, para as mentiras que contamos ao mundo e a nós mesmos. Todos mentimos. Até o mais honesto de nós. Porque se mostrássemos toda a verdade como ela é, seríamos para os outros uma louca em camisa-de-dormir.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1686

Quatro Casamentos e Três Funerais


A respeito do cartaz “Não matem os velhinhos”, lembrei-me de uma gaiata que conheci, bem mai’nova e desempoeirada que a sirigaita da frase. Sorridente e surpreendente no seu batom vermelho-malagueta e óculos-escuros-femme-fatale, assentia com a cabeça enquanto escutava a sua história ser-me contada pela amiga que fez as apresentações.

Que a jovem contava oitenta e duas primaveras. Sorri com admiração, duas vezes a minha idade.

Que o marido tinha morrido havia meia-dúzia de anos num acidente de viação; que era ela quem estava ao volante. O meu sorriso logo esmoreceu, dando lugar ao silêncio respeitoso, compadecido e atrapalhado de quem ficou subitamente sem saber como reagir.

Mas que continuava a conduzir. E que entretanto tinha casado novamente havia poucos meses, lançava a entusiástica amiga enquanto a moça de oitenta e dois anos ia acenando com a cabeça numa expressão travessa. O meu sorriso voltou aos poucos a estender-se aliviado, ora bem, a vida continua, está certo, tem que ser assim.

Que era a quarta vez que casava. As minhas sobrancelhas subiram em espanto.
E todos pela igreja. Homessa, como?, indaguei. Eles morrem todos!, exclamou sem grama-de-drama. Não aguentei. Levei as mãos à cabeça e ri-me incrédula. Os lábios vermelho-malagueta riram também, da tragicomédia que por vezes é a vida; e que se apresentava ali, simples, despreocupada e limpa na doce e divertida senhora que vivera o dobro de mim.

Compreendi no seu riso que não havia tempo a perder, culpas carregar, tristezas a alimentar, dramas para chorar. Havia tão somente um ponteiro de tempo a marcar tiquetaque e um apetite voraz pela vida como o de uma criança que apenas quer os doces sem passar pela sopa e pela salada. Tudo é relativizado. As tragédias, o que os outros pensam, as preocupações, os medos. Só há tempo para o agora e para a verdade que, no fundo, são quase sinónimos um do outro.

Ajudei-a a subir as escadas depois da consulta. Os olhos brilhavam-lhe. Ia com pressa, afinal estava casada há pouco tempo e o corajoso marido desafiador das funestas estatísticas esperava-a em casa. Despedi-me grata pelo privilégio da aprendizagem que trouxe aquele sorriso vermelho-malagueta, com uma admiração e afecto que duram até hoje.

O arcano Ás de Paus aponta-nos a luz da vida e diz-nos que podemos fazer com ela tudo aquilo que quisermos, a qualquer momento. E que bom que é. Tenhamos a idade que tivermos. Aconteça o que acontecer. Só depende de nós. Mesmo que os outros não entendam as escolhas imprevisíveis ou fora do que é considerado “normal”.

Que a centelha divina possa brilhar enquanto houver caminho para andar. Os velhinhos já não são como antigamente; estão mais vivos, mais rebeldes e mais jovens que muitos jovens que andam por aí a passear cartazes.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1685
foto: Mansellgrl5, licença cc0