Como Passar de Besta a Bestial

quarta-feira, março 23, 2016


Todas as histórias são histórias de amor. Umas, de amor sentido. Outras, de amor não sentido. Porque um rio que não consegue desaguar no mar, não deixa de ser um rio. 

Quando não nos sentimos apreciados e a nossa existência se torna indiferente àqueles que valorizamos, podemos cair no precipício de questionar o nosso próprio valor e, ao fazê-lo, despedaçamo-lo - e a nós mesmos. Há partes de nós que deveriam permanecer intocáveis, fechadas a sete chaves num baú de adamantino, por uma questão de segurança. - E nós somos os seus maiores usurpadores.

A maior parte dos problemas de relacionamento, sejam estes entre amigos, vizinhos, familiares, cônjuges ou colegas de trabalho, têm a mesma raiz: o sentimento de desvalorização. Lamentamo-nos porque não nos valorizam, sem perceber que este poço sem fundo irá acompanhar-nos para onde quer que nos desloquemos, porque ele é nosso, e não dos outros, que apenas replicam a nossa relação connosco.

Mas de onde vem isto? Este buraco na alma é a dor causada pelo amor que não sentimos por nós mesmos. Desejamos que sejam os outros a amarem-nos, em proporções desmesuradas, por eles e por nós. Para que consigamos amar-nos e acreditar que temos valor, têm de ser os outros a demonstrá-lo. - É isto que pensamos sem pensar, quando nos sentimos desvalorizados.

Contudo, os outros não entendem tal necessidade. Por muito que nos amem, nunca será o suficiente para fazer mudar de opinião o nosso obstinado grupo de jurados interno, que já nos condenou ao desvalor, enviando-nos para os calabouços da auto-comiseração!

E cresce a insatisfação, o ressentimento, a frustração. Os outros fartam-se de nós. Quem pode censurá-los, se até nós já nos fartámos de nós mesmos. Estamos por nossa conta.

Ainda que tenhamos as mais refinadas e admiráveis qualidades humanas, ninguém nos amará, se não o fizermos primeiro. Em boa verdade, “não há amor como o primeiro”. Esta expressão, que tem sido pobremente interpretada desde sempre, significa que não existe amor que se possa equiparar àquele que sentimos por nós mesmos. Logo, nenhum tipo de amor externo, por mais profundo e idílico, poderá compensar tal inexistência.

A carta 5 de Ouros, esta semana, confronta-nos com as nossas fragilidades e ensina-nos que temos de ser nós a automotivar-nos, porque mais ninguém o fará. Mesmo que tenhamos de fazer das tripas coração para conseguir perdoar os outros pela sua incapacidade de nos amarem como achávamos que merecíamos. 


Porque só quando reconhecemos que, afinal, o nosso vazio era um rio de amor que não tinha para onde desaguar, conseguimos compreender que os outros nos amaram na medida exacta que precisamos para encontrarmos o amor por nós mesmos.

É tempo de partir espelhos e de ver-nos a partir de dentro, sem recear uma maldição de sete anos de azar, mas, pelo contrário, preparando-nos para muitos anos de amor pleno. 


Ensinemos o mundo a amar-nos pelo exemplo: amando-nos a nós mesmos. E se, mesmo assim, o mundo não entender de imediato a lição, não devemos, jamais, parar de ensiná-la. Tomemo-lo como missão de vida. E deixemos que aqueles que insistem no desamor tenham tempo e espaço para que também o encontrem dentro de si mesmos.

Hazel
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, 24 Março

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