“Vamos à vida, que a morte é certa!”



Seria mais correcto - e belo, até - dizer-se que fulano assistiu a 41 voltas da Terra dadas em torno do Sol, em lugar de se dizer que tem 41 anos. Da mesma forma que poderia combinar-se um jantar na semana seguinte para “daqui a 7 voltas da Terra sobre si mesma” - porque o tempo, na realidade, não existe. É uma ilusão universalmente partilhada que se tornou uma verdade quase palpável.

A invenção a que chamamos “tempo” foi criada para medir a velocidade de deslocação da Terra em relação ao Sol. Nós somos energia em movimento num planeta cigano que não pára num só lugar, mas vive em rotação e translacção permanentes, porque é assim a sua natureza - e contrariá-la seria morrer.

No entanto, fazemo-lo tantas vezes a nós mesmos ao longo da vida. Abandonamo-nos a essa espécie de morte durante dias a fio, ou semanas. Meses. Anos, até.

Há pouco tempo, conversei com uma senhora encantadora que estava morta há mais de 40 anos. Contava-me que antigamente é que era feliz. Viajava muito, lia, a vida era mais fácil, as pessoas eram mais chegadas na terra onde morava, gostava do emprego que tinha. Mas tudo foi definhando aos poucos. Vive morta entre os fantasmas das memórias, as fotos antigas vistas e revistas inúmeras vezes, os bibelots lascados, e o olhar vazio suspenso numa partícula de pó que se desloca no ar tão lentamente quanto a sua existência. Os filhos, cada um seguiu a sua vida. Só sai de casa para ir ao médico.

Os ponteiros dos relógios que ainda trabalham, marcam o compasso com indolência, como uma mensagem subtil de que o tempo - esse tal que não existe - continua a avançar, mesmo tendo ela desistido de si mesma; estando morta apesar de continuar viva.

Com todas as diferenças que nos distinguem uns dos outros, todos habitamos o mesmo pedaço de Terra suspenso no cosmos e rodeado de estrelas brilhantes. Partilhamos a deslocação, o movimento e a velocidade desta gigantesca nave espacial, embora sejamos tripulantes distraídos que se esqueceram do seu papel.

Esta semana, o arcano maior O Carro incita-nos a avançar, a mover-nos, a aproveitar as oportunidades que nos são proporcionadas, por vezes, sob a aparência de um desafio difícil de superar e a tomá-lo como um ponto de apoio para a nossa alavanca de Arquimedes, elevando-nos acima da apatia e da inércia, e assumindo o controlo da nossa rota solar.

Assim como o planeta não pára nem por um segundo de rodar, nem mesmo quando acontecem as mais tenebrosas catástrofes, também nós temos o dever de prosseguir o movimento e de lutar por aquilo que nos inspira e realiza, com confiança e coragem para mudar o que já se encontra a definhar dentro de nós. O caminho certo a seguir será sempre aquele que nos faz sentir vivos e pulsantes, fortes no corpo, na mente e no espírito!

Hazel

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, 26 Maio
Foto: Pinterest

Se a vida te dá limões, é porque os plantaste.


A fé na Humanidade caminha em passos vacilantes enquanto “os maus” continuam a ser maus e nada parece acontecer-lhes. Safam-se sempre, os sacanas. Imaginamo-los a envelhecer bronzeados, sem flacidez nas nádegas e cheios de charme com o dinheiro dos nossos impostos à beira da piscina, de cocktail colorido na mão, olhar felino e um sorriso mefistofélico nos lábios.

Ainda não consegui discernir se actualmente a corrupção é maior, ou apenas mais noticiada que no tempo dos dois canais de televisão. Parece que anda meio mundo a enganar outro meio mundo. Na política, nas empresas, nas associações, nas igrejas, nos círculos esotéricos, nas terapias alternativas, nas famílias, entre amigos.

Para quê ser certinho, com tantos por aí a roubar, a enganar, a desrespeitar o próximo - e a rirem-se na nossa cara. Vivemos permanentemente com um Darth Vader imaginário a seduzir-nos na sua voz metálica e abafada - porque o lado negro da força parece ser mais poderoso, ter mais sorte e até mais estilo.

No entanto, a decisão é sempre nossa. Queremos que a vida nos dê maçãs doces e reluzentes, cor de rubi, quando aquilo que andámos a plantar foi sementes de limão

O Universo é muito justo, até mesmo no que consideramos injusto. Se o que lançamos à terra é amargura, competitividade, rivalidade, ganância, falta de verdade, escassez, é justamente isso que iremos colher mais tarde. Podemos tentar enganar o mundo inteiro, mas - bem lá no fundo - todos sabemos aquilo que fizemos. A justiça é um fruto que pode demorar bastante tempo a amadurecer, mas acabaremos sempre por ter de colhê-lo. Como se diz, o plantio é opcional, mas a colheita é obrigatória.

Esta semana, a carta A Justiça recomenda-nos a vigiar as nossas acções, mesmo as mais pequenas, procurando que sejam tão límpidas, honestas e generosas quanto nos for possível. Aqui, neste simpático planeta que partilhamos, não existem santos. Todos já fizemos, numa ou noutra ocasião de fraqueza, um chichi fora do penico.

Que atire o primeiro limão-siciliano aquele que nunca meteu uma mudança abaixo para passar o semáforo laranja, enquanto via se não havia polícia por perto. Somos humanos. Olhemos um pouco mais para nós, e menos para os outros. Afinal, a única pessoa que temos o poder de melhorar somos justamente nós.

Se aquilo que desejamos colher é abundância, alegria, paz, amor, é precisamente isso - sem tirar nem pôr - que temos de dar ao mundo. Não vale desistir à primeira. Afinal, os frutos demoram até nascer. Na minha cozinha, tenho duas sementes de abacate e uma terceira na varanda há mais de duas semanas. Ainda não nasceu nada. Mas eu lá vou regando todos os dias...

Hazel

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, 19 Maio

O que queres ser quando fores grande?


Aos 5 anos, vi uma telefonista com auscultadores a transferir chamadas desligando fios de um lado e ligando-os noutro. Fascinou-me a sua voz áspera, eficiente e monocórdica. Fumava como uma chaminé enquanto trabalhava na central que se assemelhava ao cockpit de um avião. Era o começo dos anos 80 e isto era tecnologia de ponta. 

Os telefones começavam aos poucos a ser instalados nas casas; dava-se 25$00 pela lista telefónica e falava-se alto nas chamadas regionais porque o interlocutor estava longe! Quis ser telefonista quando crescesse (ainda bem que não fui, dada a minha antipatia pela invenção de Meucci).

Aos 10, Yuri Gagarin foi o meu herói. Com ele, viajei de foguetão entre as estrelas e descobri os mistérios escondidos para lá das nuvens, onde a ausência de gravidade nos suspende no ar como pássaros livres. Ah, como quis ser astronauta. Estava disposta a sacrificar-me pela evolução do conhecimento. Não teria saudades da Terra, a Terra não teria saudades minhas. Seria perfeito.

Aos 11, quis ser modelo. Enfiava duas laranjas dentro do soutien da minha avó e vestia-o por baixo dos exóticos conjuntos que criava com as suas roupas - com que desfilava pela casa com grande seriedade e satisfação. Quando acabava o faz-de-conta, pendurava tudo impecavelmente nos cabides para que ninguém descobrisse.

Aos 12, quis ser dona de uma fábrica de perfumes, vestir tailleur cor-de-rosa, e ter uma secretária grande repleta de frasquinhos de vários formatos e tamanhos onde misturaria fragrâncias florais únicas. Nas janelas do meu escritório, haveria estores de lâminas que deixariam ver as palmeiras lá fora. Seria em Malibu?

Aos 14, quis ser vocalista de uma banda de rock. Vestiria cabedal preto e calças de ganga rasgadas. Seria moderadamente devassa. Teria uma Harley Davidson e tocaria guitarra eléctrica de forma estridente. Deuses, ainda bem que nunca aconteceu. Os que não ficassem surdos, ficariam loucos.

Aos 15, quis ser professora de inglês. Organizada, sóbria e picuinhas, de casaco de bombazine castanho, uma pasta simples onde guardaria os livros para as aulas e uma maçã vermelha sobre a mesa. Teria giz de várias cores para escrever no quadro negro. Os meus alunos fariam muitos ditados e cópias. Seria chata, e teria prazer nisso.

Aos 17, quis ser repórter de viagens. De chapéu de palha e sandálias, iria mostrar o mundo ao mundo. Deixaria tudo e todos para trás. Iria sozinha. O mundo seria a minha casa. Escreveria sobre as minhas viagens e teria um programa de televisão que seria transmitido a partir de qualquer lugar inesperado.

Isto talvez explique porque me sinto realizada se fizer várias coisas diferentes. 
Os astrólogos diriam que é porque tenho Júpiter em Gémeos. Como as Matrioskas, há várias mulheres dentro de mim e cada uma é feliz a fazer a sua parte: blogger, tradutora, revisora, cronista, taróloga, terapeuta, professora, bailarina, orientadora de meditações, curadora, poetisa que não rima, mãe, contadora de histórias.

Fechei a porta dos sonhos durante muitos anos. Talvez achasse que sonhar tem prazo de validade e o meu estivesse ultrapassado. Contudo, nos últimos anos, os sonhos voltaram. Sonho em segredo e escrevo os meus desejos em bocadinhos de papel que dobro e escondo onde ninguém possa encontrá-los e rir de mim por ainda me atrever a sonhar.

Entretanto, finalmente decidi o que quero ser quando for grande. Quero ser eu. Completa.

A caminho da realização,

Hazel

39 anos!

Há dias, estava atrasada para ir buscar o meu filho à escola. Tinha acabado de tomar banho, só tive tempo de enfiar umas calças de ganga e uma camisola, e saí a correr, de cabelos molhados. Encontrei-o sentado no chão com os colegas a jogarem nos telemóveis. Ele levantou a cabeça, olhou para mim e continuou o que estava a fazer.
- Então?!, disse eu.
- Ah, és tu! Pensava que eras uma adolescente, exclamou o meu gaiato.
Ainda que escandalosamente bem conservada, hoje faço 39 anos. 39!
Ai minha nossa. Não sei como é que isto aconteceu.

Estou atónita por ter chegado aqui tão depressa - eu, que ainda ontem colava pastilhas elásticas debaixo da mesa na escola.

Aos 39 anos, temos mesmo de deixar-nos de merdas e agarrar a vida, porque ela escoa-se como areia numa ampulheta. Não há uma gaveta extra de tempo para onde possamos atirar os sonhos e guardá-los enquanto esperamos nem sei o quê.
Não dá para ignorar o que sentimos por baixo da pele. É agora. Ou nunca.

Aos 39 anos, não podemos mais olhar para trás, mas caminhar em frente, fazer planos, atirar-nos à loucura que sempre amordaçámos por receio do que os outros possam pensar. Afinal, nesta idade, já ninguém nos pode obrigar a comer a sopa.
A nossa felicidade está exclusivamente por nossa conta.

No ano que vem, não sei como me sentirei com a mudança de "inta" para "enta", mas, até lá, prometo solenemente a mim mesma, com todos vós como testemunhas, que darei o meu melhor para fazer tudo aquilo que me traz alegria!

Em palco com as minhas queridas colegas, no último espectáculo de dança oriental de 2015.

Uf!
Uma enorme e sentida vénia, de nariz a tocar nos dedos dos pés.

Pronta para soprar as velas,
Hazel

Sangue, dor e amor.


Há feridas que sangram para sempre. Por muitas compressas e ligaduras que se lhes coloque,  o sangue continua a correr de fio e a dor torna-se permanente, de tal forma que nos habituamos a ela, como um fantasma sempre presente que faz ranger o soalho no mesmo lugar há tantos anos - e já quase não o ouvimos. As respostas que nunca nos foram dadas. O abraço quente e sincero que nunca se estendeu em torno do nosso corpo. O esperado pedido de desculpas que nunca foi dito. O amor que nunca chegou a manifestar-se de forma límpida, sem a toxicidade da crítica e do ressentimento.

Diz-se que as pessoas que foram magoadas são as mais fortes, porque sobreviveram. Talvez seja só o que se diz. A dor, ora nos fortalece, ora enfraquece, num imprevisível vai e vem que oscila ao sabor do vento. 

Na verdade, as pessoas magoadas são sempre mais frágeis e sensíveis e, sobretudo, mais atentas, por necessidade de auto-preservação. Têm a reputação de desconfiadas. Por vezes, tornam-se frias e reservadas, quem sabe, por terem de anestesiar os próprios sentimentos. Em muitos casos, as pessoas que foram magoadas sentem uma necessidade inconsciente de magoar os outros, criando um ciclo vicioso que apenas se desfaz quando percebemos que o fazem porque não sabem ou conseguem aliviar a própria dor de outra forma.

Esta semana, a carta 3 de Espadas recomenda-nos a olhar para dentro, para as nossas próprias feridas e entendê-las, aceitando-as como necessárias para crescermos como seres humanos. Afinal, até mesmo uma árvore que seja podada, continua a crescer. 
Não desiste nunca. Se lhe cortam um ramo, com o tempo, estende outro noutra direcção. Desde que haja luz, água, alimento. Contando que haja amor, venha ele de onde vier - também nós conseguiremos estender os nossos ramos e renascer dos cortes que a vida traz. E se o amor não vier de fora, que venha de dentro em primeiro lugar. 

Talvez não seja preciso que as feridas sangrem para sempre, afinal.

Cuidemos de nós, com muito amor, e cuidemos também dos outros. Abrandemos a velocidade, para evitar magoar alguém. Se, na pressa de realizarmos os nossos objectivos, causamos danos pelo caminho, directos ou indirectos, que merecimento será o nosso? Haja amor, haja abraços daqueles em que os corações se encostam e batem em uníssono, haja compreensão, haja sinceridade.


Hazel

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, 5 Maio