Cantar de Galo

quinta-feira, novembro 30, 2017


Ainda o galo não abriu o gasganete para cantar os bons-dias e já se ouve o velho tractor a andar para-cá-e-para-lá. De ceroulas arrepanhadas até aos sovacos e olhos esbugalhados das noites mal dormidas, o homem anda desnorteado com o trabalho.

«Havia de ir ali pedir um tractor emprestado ao meu compadre, mas de certeza que ele não mo empresta», remói baixinho com azedume. O galo alonga o pescoço e espreguiça com satisfação as asas que reluzem douradas aos primeiros farrapos de luz matutina.

«Com tanto tractor que tem aquele gordalhufo capitalista, bem que me podia emprestar um; se tivesse dois tractores já conseguia dar conta de tudo.»

As patas do galo emproado, duras e rugosas da velhice, tacteiam o chão, encaminhando-se para cantar os bons-dias do alto do poleiro, mas este foge espavorido com o estrondo do motor subitamente engasgado, em convulsões com os últimos estertores da morte que se apresentou sem avisar com uma correia que rebenta.

Enraivecido, Zé Onofre pontapeia o pneu enlameado e atira com o chapéu para o chão. Só faltava isso; ficar sem o único tractor que tinha. Coxeia em direcção à vedação que o separa do terreno verdejante do compadre. «Aquele garganeiro, com tantos tractores, há-de estar a rir-se de mim agora.» Os dedos calejados levantam a tábua que prende a cancela e os cães do vizinho ladram em protesto, reclamando o território.

Os degraus de madeira rangem com queixume debaixo do peso das botas que caminham com a irregularidade de quem está de cabeça perdida. Sorve o ranho do nariz e bate à porta sem delicadeza. Ouvem-se passos no interior da casa.

O compadre surge, de chanatas nos pés e remelas nos olhos ensonados. «Bom d…», «Olhe! — corta o Zé Onofre, com uma voz que se lhe esganiça embaraçosamente com a irritação — Meta os tractores no cuuu!».

Sai de rompante, virando costas ao vizinho, sem que este consiga fechar a boca incrédula. Do outro lado da vedação, ouve-se o galo cantar.

O arcano Três de Ouros recorda-nos que nenhum homem é uma ilha. Trocando o orgulho pela boa-vontade, a impulsividade pelo bom-senso e o individualismo pelo trabalho de equipa, tudo se arranja. Juntos chegamos mais longe. O único que canta de galo sozinho é mesmo o galo.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1658
foto: Public Domain Imagens, licença CC0

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