A Dama do Pechiché

quinta-feira, janeiro 25, 2018

Os frasquinhos de perfumes pecaminosos ocupavam quase todo o pechiché, reluzentes, tentadores. Uma serpente filiforme de odor amadeirado esgueirava-se sinuosa de uma tampa mal encaixada e evolava pelo ar, penetrando as narinas; incitando a destapar e cheirar o conteúdo de todos os vidros, embriagando os sentidos nas fragrâncias doces e exóticas, reveladoras de prazeres secretos e proibidos.

Uma taça de delicada porcelana antiga transbordava de maquilhagem comprada por catálogo, iluminada por um candeeiro com quebra-luz de franjas. Todo o quarto tinha uma atmosfera de boudoir, feminino, quente, íntimo, sedutor, onde certamente se passavam escândalos indizíveis.

As mulheres cumprimentavam-na com distância educada e prudente, numa cordialidade artificial, mas detestavam-na secretamente (porque, no fundo, a admiravam — ainda mais secretamente). Creio que a temiam e a todo o poder que provinha da sua pouco modesta auto-confiança. Os homens receavam-na também — mas não a detestavam. Pelo meu olhar de gaiata-de-soquetes-até-aos-joelhos, achava-a fascinante, rebuscada, majestosa; enorme e inacessível.

Via-a sempre sozinha, altiva, imponente, com um caminhar felino, como se deslizasse por uma estrada de veludo nos seus sapatos altíssimos. As ancas insinuavam prazeres ávidos de ser degustados. A postura, absolutamente perfeita e digna. O sorriso silencioso, de quem detém segredos impossíveis de deslindar, por muito que se perscrute; de alguém que sabe o valor que tem e não precisa que lho digam, atrevo-me a adivinhar.

Se era meretriz, como diziam, não sei. Era bonita. E uma não é sinónimo da outra, apesar do que as pessoas achavam. Eu nunca vi nada. Nem eu, nem ninguém. A feia verdade é que ninguém suportava a sua beleza e, por isso, inventavam-lhe histórias nunca comprovadas — e, ainda que o fosse, que tinham eles a ver com isso?

Vi-a no outro dia, quando fui ao Banco. O peso da idade diminuiu-lhe a altura dos saltos dos sapatos, afofou-lhe as pálpebras que caem agora cansadas e desenhou-lhe rugas como bigodes de gato matreiro à volta do sorriso que prevalece inalterado. Sempre sozinha, sempre cheia de si, de beleza, de insinuação, como se risse por dentro dos pensamentos escondidos daqueles que cruzam o seu caminho, onde o veludo se estende pela estrada à sua passagem, Deusa entre mortais.

A sua história não vo-la posso contar; permanecerá para sempre um mistério, excepto talvez para mim, que escutei os segredos sibilados em torno do meu pescoço pela serpente de perfume no seu boudoir — mas nunca os revelarei.

O arcano Rainha de Ouros ensina-nos a não detestar a Dama do Pechiché, mas a permitir-nos apreciá-la pela coragem de dedicar uma vida inteira à arte da beleza e dos prazeres dos sentidos.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1665
Imagem: Le Boudoir, Delphin Enjoiras



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