A Senhora da Solidão

A solidão apavora. É uma mulher velha vestida de negro, com um manto feito de vento frio que uiva em torno de ti, trespassa as fibras das tuas roupas e arrefece-te desde os ossos até à alma, fazendo-te esquecer quem és.

Sempre a tive como companhia, mesmo quando me encontrava no meio da multidão.
Ela sussurrava-me ao ouvido, entre um ranger de dentes, és minha...

Muitas vezes, pedi-lhe em lágrimas que se fosse embora e me deixasse só. Que paradoxo, este, pedir à Senhora da Solidão que me deixe só.
E, contudo, ainda mais ela se acercava de mim.

Após uma vida a caminhar de mãos dadas com ela, acostumei-me à sua presença silenciosa, subtil e imponente. Resignei-me perante aquela força constante.

Habituei-me ao frio do seu misterioso manto negro e deixei-me envolver nele de tal forma que acabei por encontrá-lo vestido em mim.
Envergo-o orgulhosamente, descobrindo-lhe conforto, segurança e sabedoria.

Ali está o trono, a flutuar no Vazio do céu negro da noite que se confunde com o negro das minhas vestes. Caminho para ele. Sento-me. Encosto-me para trás.
Abraço a noite e ela abraça-me de volta. Orquestro o silêncio. E ordeno aos ventos que gritem com uma angústia estridente através das frestas das janelas das casas e arrefeçam as almas solitárias que se atrevem a chamar por mim.

Sou Eu a Senhora da Solidão agora, e assumo o meu Poder.

Dia 199

Os ventos uivam no céu negro como demónios esquivos e enraivecidos à solta.

Os redemoinhos ascendentes de ar gelado partem o tecto do mundo em fragmentos de espelho de obsidiana.

É ela. A Senhora da Solidão.
Saiu pela noite fora, dominando os céus e abrindo a boca enorme e voraz para engolir todos os que estiverem sozinhos em casa.

Não adianta trancar as janelas, pois a Senhora da Solidão, com as suas vestes andrajosas, tecidas de fio de teia-de-aranha preto, atravessa as frestas mais ínfimas, liquefazendo-se e escorregando pelas paredes. Sobe pelos pés da cama no silêncio da noite e devora-nos inteiros.

No dia seguinte, acordamos com o pescoço gelado, achando que temos de isolar as janelas porque entram estranhas correntes de ar. Mas ela consegue sempre passar.
Nem que seja pelo buraco da fechadura...

Dia 288

Andei a arrumar as gavetas e encontrei um papel dobrado. Abri-o.
Tenho este hábito de escrever coisas, guardá-las e depois encontrá-las mais tarde.
Quase sempre, deito-as no lixo. Mas este, resolvi transcrever para aqui.
Foi escrito há vários meses atrás:

Um pé no Paraíso, outro no Inferno.
Uma mão a tocar a Luz e a outra as Trevas.
Não estou em sítio algum.
Sou uma árvore arrancada da terra pelo furacão, que rebola pelo deserto sem direcção.
Sou o raio de Sol que atravessa as folhas das árvores e surge entrecortado aos olhos de quem passa. O copo de água entornada.

As mãos ossudas, frias e trémulas da Senhora da Solidão alcançam o meu ombro.
Estou aqui, diz-me. Chegou, desta vez sem gritar, através das frestas das janelas mal fechadas, e eu agradeci a gentileza de me deixar habituar gradualmente ao seu gelo.
Sem sustos.

Já somos velhas amigas. Deito a cabeça no seu colo, que se assemelha a um poço negro e sem fundo, e deixo-a embalar-me. Canta-me em voz cavernosa, enquanto as portas abrem e fecham numa sinfonia de rangidos, para acompanhar a sinistra melodia.
Fecho os olhos e deixo-me escorregar para o poço negro e sem fundo.

Algo me agarra por um braço e prende os cabelos. Não consigo descer mais. Estou a meio do poço. Tacteio as paredes à minha volta. São lodosas e frias. Tento gritar mas a voz não sai. Abro os olhos e vejo-a. Afinal, ainda estou no seu colo. Foi só um pesadelo.
A Senhora da Solidão, que nunca dorme, adormeceu.

Exorcizar demónios

O vento não tem dado tréguas. Ouvi-o uivar como um lobo esfaimado a noite toda. E pressenti que algo estava para chegar.

Quando a manhã nasceu, senti um fio de ar frio que entrou pela fresta da janela junto à banheira, e me beijou o corpo nu, aquecido pela água quente que escorria do chuveiro.

Reconheci imediatamente o leve toque desse beijo frio e sinistro, desses lábios ressequidos e desdenhosos que há muito não sentia.
A minha velha amiga e inimiga, a minha guardiã.
Venho despedir-me, disse.

Há muito que me tinha esquecido dela e o esquecimento enfraqueceu-a. Ela tinha-se fundido em mim quando me sentei no seu trono, quando abracei a sua escuridão e nos tornámos uma.

A Senhora da Solidão instalou-se majestosamente em todos os recantos da minha alma, esperando reinar após a nossa aliança. Ou teria sido uma rendição?
Mas não foi para sempre. Há algum tempo atrás, ouviu-se um pequeno e tímido som ao longe, quase imperceptível. Vislumbrava-se uma pequenina luz. E, gradualmente, chegou uma multidão, que acabou por invadir o seu reino de trevas.

O seu reinado de frieza e silêncio foi estilhaçado como um espelho que cai no chão.

Os seus dentes rangiam com a visão dos archotes acesos que se aproximavam. As labaredas lambiam o ar frio e escuro, erguendo-se furiosas como demónios.

A Senhora da Solidão, outrora austera e imponente, tornou-se mais débil a cada novo demónio ardente que se aproximava.

A luz instalou-se. Assim como os risos. Vozes graves, agudas, histéricas, estridentes, riam sem parar. E, sem que ninguém lhe tocasse, a velha ossuda de manto negro transmutou-se em fumo preto, que desapareceu. Esconde-se agora nos cantos escuros das casas, junto ao chão, covarde, negra e pequena. Desculpa se te matei. Mas ninguém me vence. Nem tu. Adeus. Grata por tudo.

[Terminei de escrever este post com o Sol a entrar na sala.]