FOI NA PRIMAVERA TENSA de mil-nove-e-noventa-e-nove que uma malfadada espinha de carapau me escorregou através da glote e se espetou bem lá no fundo da garganta.
(Se é sensível a descrições de teor visceral, não leia mais. Vá-se embora.)
Tentei tossir, mas não saiu. Comi pedaços de pão inteiro, na esperança de empurrá-la aparelho digestivo abaixo, e depois-logo-se-via —, tentando desviar a memória funesta daquela tia-avó que um dia foi parar ao Hospital com uma espinha de bacalhau atravessada no reto. Nada.
Deitei-me desejando que a espinha demoníaca desaparecesse milagrosamente e tudo não tivesse passado de um sonho menos bom quando acordasse. A manhã chegou e, com ela, a facínora.
Tomei duche com a espinha. Vesti-me com a espinha. Fui trabalhar com a espinha. Ao fim do dia, dei-me por vencida. Fui ao Hospital.
A funcionária da entrada parecia farejar algo embaraçoso no motivo da minha ida às Urgências, avaliando o meu aspecto saudável e ao mesmo tempo inegavelmente acanhado. Não, não tinha objectos entalados nas cavidades vaginal nem anal (apre!).
— Tenho uma espinha espetada na garganta — sussurrei.
— Tem o quê? — rosnava a redonda senhora com olhos maliciosos, de dentro do guichet. A fina arte da velhacaria consiste em fazerem-nos repetir em volume elevado, numa sala cheia de pessoas atentas, o motivo do nosso embaraço.
— TENHO UMA ESPINHA ESPETADA NA GARGANTA — respondi, agora alto, para deleite da curiosidade mórbida que me rodeava.
Fui atendida pelo Otorrinolaringologista, um sujeito de bigode fininho, calma anestésica e paciência infinita. Espreitou cá para dentro decidindo mentalmente que instrumentos (de tortura) iria utilizar e chamou o enfermeiro:
«Segure-me aqui a língua desta menina.»
O jovem enfermeiro arrepanhou-me a língua enquanto o médico segurava uma pinça suficientemente grande para agarrar a tromba de um elefante. A tromba? O elefante inteiro.
Conforme a pinça zoológica abria caminho goela abaixo, constatei como os humanos podem ser tão parecidos com os gatos em espasmos pré-vómito. Julguei que fosse vomitar na cara do enfermeiro que me esticava a língua como se fosse a passadeira vermelha dos Óscares.
Foram várias as investidas para chegar à espinha. As lágrimas escorriam-me pelos cantos dos olhos, enquanto tentava encontrar algum lado positivo naquilo. Vai que tinha ficado espetada à saída.
Por fim, a super-hiper-mega-pinça caça a diaba. Depois de tanto tempo enterrada nas minhas carnes tenrinhas e indefesas, esperava uma espinha gigante. Tinha menos de um centímetro. Muito pequenina. Mas velhaca, bem velhaca, a danada.
Ainda olho os carapaus com um desprezo que mais ninguém entende, a não ser a minha glote, que ainda guarda essa memória.
O arcano Cavaleiro de Paus recorda-nos que nada é definitivo. Em particular, quando se trata de algo que sabemos não pertencer onde está. É sempre melhor moderar os impulsos e degustar os prazeres da vida com algum cuidado.
Tudo o que não se encontra na sua devida natureza, mais tarde ou mais cedo acabará por partir. Restam as experiências vividas, a aprendizagem e o desapego.
Como um autêntico carapau-de-corrida,
Hazel
Consultas em Oeiras e online
Tarot | Reiki | Regressão | Reprogramação Emocional | Terapia Multidimensional
Marcação: casaclaridade@gmail.com
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1681
Comentários
Rendeu-nos um bom alerta e a receita do carapau abaixo, obrigada, abraços carinhosos
Maria Teresa
Mas vou parar por hoje que tenho outras coisas a fazer.