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O Elefante no Canto da Sala


Está um elefante enorme ali no canto da sala. Mesmo junto aos delicados cortinados de tule. Todos se esforçam por fingir que ele não existe, mantendo a aparência de que está tudo sob controlo. O animal, entretanto, atirou com um candelabro de cristal para o chão e espetou um chifre na televisão. Ainda assim, ninguém viu ou ouviu um som. 

O chá é bebido com ritual e elegância, dedos mindinhos espetados, lábios discretamente pintados que se esticam com languidez e encostam na loiça branca, olhares afectados, conversas vazias. É então que o paquiderme caminha pesadamente entre sofás de veludo e mesinhas repletas de peças de bricabraque, derrubando tudo à sua passagem. Dirige-se exactamente para a mesa de jantar, onde se senta, estilhaçando todo o serviço de chá, que havia sido uma herança valiosíssima. Até que enfim - acabou.

O chá era horrendo, as cadeiras demasiado rectas e desconfortáveis, já não se aguentava mais. Uns, choram o prejuízo material. Outros, recuperam a compostura e vertem mais um pouco de chá para a única chávena sobrevivente, insistindo na negação das evidências. Outros ainda, têm a coragem de enfrentar a realidade e procuram discernir o motivo e o propósito de todo aquele despropósito. Estes últimos, são os que montam o elefante e batem em retirada, libertando-se de todo o enfado de uma vida de fingimentos, obrigações e insatisfação.

Abençoadas sejam as frustrações por que passamos, que nos fazem duvidar de nós mesmos, das escolhas que fizemos e das que não conseguimos fazer porque nos acobardámos. Abençoadas as arreliações que nos desgastam, fazem cabelos brancos, fervilham o ácido no estômago e descompassam o coração. 

Somos feitos de luz, mas também somos feitos de toda esta matéria densa e corrosiva. E, em certos momentos-chave, não nos resta senão permitir que as sombras se elevem à superfície e encontrem a luz, a feiúra e a beleza fundidas numa só, as entranhas que nos saem pelos olhos e escorrem em lágrimas de tensão liberta. É então que tomamos consciência que nos bastamos a nós mesmos e estamos preparados para arriscar o que quer que seja que virá depois.

Esta semana, a carta O Julgamento inspira-nos a sentir gratidão por todas as experiências negativas por que já passámos, pois foram justamente essas que nos desafiaram a querer mais, e nos salvaram de um dia virmos a tornar-nos alguém que já não espera mais da vida. 

Estejamos atentos e sejamos bondosos para com os elefantes nos cantos das salas onde nos sentamos, pois são eles que transportam a segunda oportunidade que precisamos para nos agarrarmos a quem somos... e libertarmo-nos daquilo que não queremos ser.


Hazel
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, 25 Fevereiro
Cronista, Viajante no Tempo, Terapeuta, Taróloga, Tradutora, Professora.

Comentários

Firmino Ascensão disse…
Ahahah. Gostei. Entre aranhas e melgões fica sempre um com sorte. E mesmo que o condicionador possa não ser as maravilhas que promete, três minutos de observação de duche no cabelo de Hazel Claridade (para um insecto deve ser uma longa metragem daquelas com vários capítulos), deve valer a refrega insectívora.
Se tenho alguma coisa a apontar é a sequência de imagens muito escassa. Talvez o tempo de preparar a objectiva, entre o chapinhar e a toalha enrolada se tenha perdido parte da sequência. Logo há que ficar pronta a disparar a máquina em prováveis acontecimentos futuros.