Em todos os lugares há sempre um filho da mãe. Às vezes até existe mais de um. O filho da mãe — sem desprimor para com a senhora que o pariu — é alguém que está sempre de olho vivo e ouvidos de tísico à espera do momento em que nos apanha na curva para tramar-nos.
Por dever profissional, social ou familiar, temos frequentemente de engolir o indesejável e peçonhento batráquio — e lidar com o filho da mãe. Vemo-nos obrigados a dizer-lhe bom dia, quando, no fundo, o que realmente desejaríamos era poder lançar-lhe um hasta la vista, baby.
Perto de um filho da mãe, todo o nosso comportamento se altera. Cá dentro, nas entranhas, erguem-se muralhas, envergam-se armaduras de aço, apontam-se canhões, bestas e roquetes. Porque com um filho da mãe nunca se sabe.
Sem darmos conta, tornamo-nos também um filho da mãe, como o filho da mãe que repudiamos. Mas em legítima defesa, claro. Porque o filho da mãe nunca somos nós. Todos os filhos da mãe que estiverem a ler irão concordar comigo e quem sabe se não serei eu também uma filha da mãe. Ninguém está livre de ser um.
Há atributos que não podemos negar a um filho da mãe, por muito que não queiramos admitir: um filho da mãe tem, geralmente, mais sorte que os outros; que não é merecida, pois recorre a artimanhas sinuosas, obscuras e duvidosas para conseguir o que quer. E isso revolta-nos, pelo esforço que fazemos para andar na linha e fazer tudo certinho nos rigores da lei e do bom-senso. Ao primeiro desvio, somos logo caçados. Já o filho da mãe safa-se sempre, parecendo usufruir de alguma espécie de imunidade diplomática divina. Pode tudo, não lhe acontece nada.
Talvez o papel dos filhos da mãe no mundo seja precisamente abanar perante o nosso olhar incrédulo um inconveniente leque de tonalidades cromáticas que se estende desde a justiça à injustiça, fazendo tremer as estruturas que nos sustentam, enquanto enfrentamos e relativizamos os nossos dogmas. Mostrando-nos a mais feia expressão da humanidade reflectida nos seus gestos, somos levados, se tivermos o desprendimento para tal, a constatar a existência desse mesmo rosto amargo e distorcido que tanto desprezamos escondido num canto escuro e poeirento dentro de nós, aprisionado e amordaçado.
Um mundo sem filhos da mãe seria imaculado, esterilizado, inodoro, incolor, ensosso, insípido. Sem textura nem atrito. Sem heavy metal; apenas com harpas celestiais a ecoar através de torrentes de luz intensa que nunca se encontra com as trevas e, por isso, nos fere a vista. E seria também irreal.
O arcano Valete de Espadas insurge-nos num malicioso e travesso alerta em relação aos filhos da mãe que nos rodeiam, sem excluir o filho da mãe do espelho da nossa casa-de-banho, que conhece todos os nossos segredos mais imorais e escabrosos e reflecte cruamente a nudez das nossas virtudes e fraquezas.
Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, 7 Julho
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