Todas as manhãs sentava-se na mesa mais afastada e ficava com o jornal aberto à frente, fingindo lê-lo enquanto o burburinho das pessoas que iam chegando aumentava aos poucos. Escutava-lhes as conversas; fazia-o há tanto tempo que era como se os seus problemas lhe pertencessem um pouco também.
Ninguém notava a sua presença, invisível nas suas camisolas cor de papas-de-aveia que cheiravam a naftalina. Sentia-se muitas vezes como um fantasma. A solidão é, no fundo, uma espécie de morte; quando ninguém conversa connosco, atestando a nossa existência, somos levados, com o tempo, a duvidar dela.
Os habitués foram envelhecendo, vinham caras novas, outros deixaram de aparecer. As paredes rosa-envergonhado do café foram ganhando um tom amarelecido como as cravinas matizadas que espreitavam do lado de fora das janelas, olhando-o como crianças com risinhos trocistas.
Aos poucos, todas as suas camisolas cor de papas-de-aveia iam ficando mais esburacadas. Depois de aparar a barba e dar umas sonoras chapadas com after shave no rosto, revolveu as gavetas em busca de algo decente e apresentável para ir ao café como fazia sempre, mas tudo tinha sido devorado pelas traças. As cretinas tinham vencido a naftalina. Sentia-se como as suas roupas: gasto, flácido, acabado.
Esperem. O que foi que eu disse?
Entrou de rompante no café. Meias cinzentas, os sapatos pretos que só usava nos casamentos e funerais e uma toalha de banho vermelho-capa-de-toureiro embrulhada à volta do corpo. Nem calças tinha. Finalmente, todos o viram. Agora sim, tinha a certeza que estava vivo.
O que é que vai tomar hoje?, inquiriu a mulher de papos nos olhos e cabelo puxado para trás num carrapito, disfarçando o espanto enquanto alisava o avental com as mãos encarquilhadas de lavar a loiça sem luvas.
Uma atitude, é o que vou tomar hoje - disse alto e em bom som -, chamo-me Arnaldo e estou doido por si.
Todos se encontravam de olhos postos nele desde que tinha transposto a porta, mas neste ponto podia mesmo sentir-se os pescoços, olhos e orelhas esticarem como elástico na sua direcção. Silêncio absoluto. O rosto da mulher, amadurecido pelo passar dos anos, foi invadido até à raiz dos cabelos por um rubor que lhe escaldava até as pestanas. Um sorriso iluminou-lhe o semblante. O tempo ficou suspenso, cristalizado. Ninguém pestanejou. O bloco de papel e a caneta com que anotava os pedidos soltaram-se da sua mão, caindo em câmara lenta no chão.
Desde então, o Arnaldo nunca mais me vestiu. Encheu as gavetas de camisolas garridas e saquinhos de alfazema e eu fui dobrada e colocada dentro da cesta onde o seu gato cor de baunilha passa as tardes a dormir. Sou agora um cobertor de gato. O Arnaldo nunca mais foi o mesmo. Nem a sua nova mulher. Nem o café. Nem quem lá estava naquela manhã - segundo me relatou a toalha de banho vermelho-capa-de toureiro.
O arcano O Carro desafia-nos a olhar para as situações que se arrastam desde o ano passado - porque, lá bem no fundo, temos receio de fazer mudanças - e instiga-nos a assumir as rédeas das mesmas com coragem, sagacidade e rapidez. Sim, esta é uma boa semana para tomar uma atitude.
Hazel
Os habitués foram envelhecendo, vinham caras novas, outros deixaram de aparecer. As paredes rosa-envergonhado do café foram ganhando um tom amarelecido como as cravinas matizadas que espreitavam do lado de fora das janelas, olhando-o como crianças com risinhos trocistas.
Aos poucos, todas as suas camisolas cor de papas-de-aveia iam ficando mais esburacadas. Depois de aparar a barba e dar umas sonoras chapadas com after shave no rosto, revolveu as gavetas em busca de algo decente e apresentável para ir ao café como fazia sempre, mas tudo tinha sido devorado pelas traças. As cretinas tinham vencido a naftalina. Sentia-se como as suas roupas: gasto, flácido, acabado.
Esperem. O que foi que eu disse?
Entrou de rompante no café. Meias cinzentas, os sapatos pretos que só usava nos casamentos e funerais e uma toalha de banho vermelho-capa-de-toureiro embrulhada à volta do corpo. Nem calças tinha. Finalmente, todos o viram. Agora sim, tinha a certeza que estava vivo.
O que é que vai tomar hoje?, inquiriu a mulher de papos nos olhos e cabelo puxado para trás num carrapito, disfarçando o espanto enquanto alisava o avental com as mãos encarquilhadas de lavar a loiça sem luvas.
Uma atitude, é o que vou tomar hoje - disse alto e em bom som -, chamo-me Arnaldo e estou doido por si.
Todos se encontravam de olhos postos nele desde que tinha transposto a porta, mas neste ponto podia mesmo sentir-se os pescoços, olhos e orelhas esticarem como elástico na sua direcção. Silêncio absoluto. O rosto da mulher, amadurecido pelo passar dos anos, foi invadido até à raiz dos cabelos por um rubor que lhe escaldava até as pestanas. Um sorriso iluminou-lhe o semblante. O tempo ficou suspenso, cristalizado. Ninguém pestanejou. O bloco de papel e a caneta com que anotava os pedidos soltaram-se da sua mão, caindo em câmara lenta no chão.
Desde então, o Arnaldo nunca mais me vestiu. Encheu as gavetas de camisolas garridas e saquinhos de alfazema e eu fui dobrada e colocada dentro da cesta onde o seu gato cor de baunilha passa as tardes a dormir. Sou agora um cobertor de gato. O Arnaldo nunca mais foi o mesmo. Nem a sua nova mulher. Nem o café. Nem quem lá estava naquela manhã - segundo me relatou a toalha de banho vermelho-capa-de toureiro.
O arcano O Carro desafia-nos a olhar para as situações que se arrastam desde o ano passado - porque, lá bem no fundo, temos receio de fazer mudanças - e instiga-nos a assumir as rédeas das mesmas com coragem, sagacidade e rapidez. Sim, esta é uma boa semana para tomar uma atitude.
Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1613
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