Cabisbaixa, enfia a mochila às costas e mete-se a caminho. É o último dia de aulas e vai realizar-se uma competição de Inglês entre turmas. Tinha sido escolhida para representar a sua, o que lhe causava dores de barriga lancinantes. Porque não escolheram outra pessoa? Só a ideia de ter de correr ou falar alto em frente a todos era tenebrosa. As costas curvavam-se sob o peso da mochila e da timidez.
Sem escapatória possível, de pernas-a-tremer e garganta seca por enfrentar os olhares das pessoas, acabou por ganhar a competição. No centro do recreio estava instalado um pódio para onde subiram os vencedores do segundo e terceiro prémios. O primeiro lugar permaneceu tristemente vazio. Queria tanto ter o prazer de subi-lo, mas só se ninguém estivesse a olhar. Incapaz de avançar, alguém lhe entregou o prémio onde estava, para despachar aquilo - um livro de contos escrito em inglês -, e correu para casa como um pássaro espavorido. Zero gramas de orgulho, toneladas de auto-censura.
Mais de três décadas depois, o youtube toca no computador portátil pousado sobre a cama desmanchada. Na cómoda, repousa o copo onde bebeu um batido natural de cenoura, framboesas, laranja e duas folhas de hortelã. O pincel biselado desenha um traço cinzento-escuro perfeito junto às pestanas. Desmancha a trança libertando os cabelos, pega na mala e nas chaves do carro. As árvores de Sintra estendem os braços à volta da estrada como se a Serra se abrisse para recebê-la num abraço verde e materno.
Os participantes da aula escutam com atenção a matéria, que explica com paixão e humor, como se esta fosse a última. Mal pode esperar pela data da próxima. Nada ficou por fazer. Conta aos alunos, entre gracejos, que tinha fobia social quando era miúda. Ninguém acreditou. No fim do dia, reúne os livros e abre caminho devagar por entre o nevoeiro sintrense. Não se sente um pássaro espavorido, mas uma ave tropical que um dia mudou de penas e finalmente aprendeu a voar em bando; continuando, no entanto, a saborear o momento reconfortante em que é devolvida a si mesma, no regresso solitário a casa.
O Eremita inspira-nos a abraçar a doçura da inexistência temporária que a solidão proporciona, para repousar a alma dos assuntos mundanos. Há reconciliações que apenas têm lugar dentro de nós quando nos dispomos a instalar o silêncio como quem desenrola uma tela branca onde podemos projectar trechos de filmes antigos e encontrar finalmente um sentido em tudo.
Hazel
Consultas em Oeiras e online
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1617
Foto: Unsplash, licença CC0
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