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A vida louca


As sevilhanas de vestidos rodados e cintura estreita ganhavam vida dançando à minha volta num baile hipnótico de pássaros e flores de todas as cores. Debaixo do chapéu-de-palha que me protegia dos quarenta tórridos graus de Sol alentejano, os meus olhos tímidos e curiosos — sob inexplicável feitiço, ou quiçá motivado pelas elevadas temperaturas — viam os pássaros de papel descerem em vôo picado para me virem pousar nos ombros com chilreios de alegria. 

As flores bailavam em espirais que se elevavam pelo ar ao compasso da música contagiante. Os homens de patilhas farfalhudas e calças-à-boca-de-sino bebiam cerveja fresca e faziam gracejos que escapavam à minha compreensão, enquanto as mulheres de sandálias às tiras se abanavam com leques e refrescavam a sede com Sumol. A fronteira que separava Portugal de Espanha desaparecia; éramos um só, com primos que hablaban castellano, uma bisabuela chamada Esperanza e pais que falavam português.

Tinha cinco anos, cabelo curto e um espanto maior do que eu perante todas as flores que forravam as ruas de maravilha, de encanto e de fantasia alegórica. O som das castanholas e o peito cheio de ganas de viver ficaram para sempre num baú forrado com tecido de cores garridas que guardei na arrecadação das memórias doces. Um dia. Um dia vou ser assim como aquelas mulheres de papel colorido, sorriso largo, cabelos compridos, a música nas ancas, saia rodada e sapatinhos de atrevimento. 

Ainda não regressei às festas de Campo Maior, mas este Verão reencontrei a magia das sevilhanas de papel a dançar-me nos olhos enquanto subia a Calçada da Bica, em Lisboa, com as fitas de bandeiras coloridas a ziguezaguear o longo rectângulo de céu entre as duas filadas de prédios baixos de onde espreitam varandas com xailes de franjas, vasos com manjericos, estendais com cuecas penduradas que ali se tornam obras de arte e rapazes debruçados de cigarro pendurado na ponta dos dedos. Ali estava o meu baú metade português, metade espanhol, escancarado junto à linha do eléctrico.

Admiradora confessa dos filmes de Pedro Almodovar; simples, crus e intensos, onde os dramas da existência são vividos pelas personagens com lágrimas, garra, desespero, volúpia e pinceladas de vermelho; onde a tristeza, as tentações e a dor pintam os lábios de cor-de-sangue e se unem numa trégua para dançarem de mãos dadas como a melancolia portuguesa se tempera de paixão ali junto à fronteira com Espanha, descubro com prazerosa surpresa que em qualquer rua onde encontrarmos flores, música a tocar e todas as maravilhas que o Verão tem para oferecer, a vida pode mesmo, por instantes, ser tão bela como um filme espanhol.

Esta semana, o arcano 4 de Paus desafia-nos a sair de casa para dançar e encontrar o conforto e o suco da vida junto daqueles que nos fazem sorrir e rodopiar. Sai um Sumol ali para a mesa 11!

Hazel
Consultas em Oeiras e online

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1638
foto: na Calçada da Bica
Cronista, Viajante no Tempo, Terapeuta, Taróloga, Tradutora, Professora.

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