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A Caixa de Música


Cravei a faca de um dos lados e torci-a para a frente e para trás até destruir sem remorsos a caixa de música. A pequena e delicada bailarina que rodopiava como Terpsícore, a musa, caiu para o chão na sua lividez de plástico sem vida, desabitada de alma e de calor. Voltei a enfiar a ponta da faca e desencaixei o mecanismo que tocava “Speak softly love” da saga “O Padrinho”, que guardei no bolso como um tesouro.

O Domingos era um homem peculiar, excêntrico, uma criança de humores voláteis e efusivos num corpo adulto, enorme e espaçoso como um Buda (nem sempre) sorridente. Mau grado o seu temperamento irascível, recebia-me sempre com um afecto e uma alegria que me faziam estalar as costelas no seu abraço exagerado, sentido e cilíndrico.

Os livros amontoavam-se nas prateleiras. Romances, poesia, ficção científica, erotismo, ocultismo, até mesmo pornografia. Não havia assuntos tabu, tudo era legítimo, digno de existir, intocado pela peneira da moral e da hipocrisia. No armário de portas de vidro, os bibelots inúteis acumulavam-se às dezenas: os patinhos de porcelana, as nossas-senhoras-de-Fátima, chávenas de chá desirmanadas, amuletos exóticos, toda uma série de quinquilharia que coleccionava, incluindo uma estatueta do Diabo.

«Mas, se reparares, estão todos de frente 
para dentro de casa, 
só o Diabo é que está virado lá para fora, 
para o lado da janela», e ria-se com satisfação. 

As suas histórias de fantasmas e outros assombros nunca me cansavam, e ele deleitava-se por ter quem lhas escutasse com o mesmo prazer que as contava. Gabava-se que, quando novo, era forte como um touro, corajoso e — espante-se — pouco modesto. Fazia apostas com os amigos que o levavam a atravessar o cemitério de uma ponta à outra pela calada da noite.

Numa dessas brincadeiras, desafiaram-no a derrubar a porta de uma casa assombrada onde ninguém conseguia entrar. De lanterna em punho, deu-lhe vários encontrões sem que esta cedesse. Na derradeira investida, a porta abriu-se abruptamente e o bom Domingos estatelou-se no chão da casa.

A lanterna apagou-se — e não tornou a acender. Se tinha entrado em grande velocidade, mais depressa ainda se pôs ao largo, e acabaram-se ali as apostas. Ria-se muito. Nunca soube se estas histórias foram mesmo vividas ou produto do seu sentido de humor que fazia as delícias do meu. Que importa.

Escondida à entrada da enfermaria, com receio que alguém me visse suspensa entre o choque e a fragilidade, observei ao longe o que restava do meu amigo. Respirei fundo e acabei por entrar em silêncio, mal tocando com os pés no chão. Conversámos sobre banalidades. A comida era má. O que caía bem era um copo de vinho branco. As enfermeiras eram simpáticas. «Gosto muito de si, Senhor Domingos, sabe disso, não sabe?», «Lá estás tu, o Senhor está no céu».

Meti a mão ao bolso e retirei o mecanismo da caixa de música, «para pôr a tocar quando vier a noite, se se sentir sozinho.» Olhámo-nos com tristeza. Sabíamos que nunca mais nos veríamos. Nessa noite, quando já estava deitada, ouvi a música tocar dentro de mim. Soube que ele estava a escutá-la naquele momento. No dia seguinte, partiu. Nunca mais tive uma caixa de música. Nunca mais tive um amigo assim.

O arcano Cinco de Copas ensina-nos que, apesar de todas as perdas que nos vão despedaçando ao longo da vida, não temos o direito de parar. A melhor forma de honrar os momentos bons é recordá-los com amor e dar-lhes continuidade em nós, com o que nos resta. Mesmo que tenhamos de terminar de escrever uma crónica a sorrir e a chorar ao mesmo tempo.

Hazel
Consultas em Oeiras e online

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1639
Fotos: Luiz-Jorge-Artista e 422737, licença CC0 
Cronista, Viajante no Tempo, Terapeuta, Taróloga, Tradutora, Professora.

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