Para uns Anjo, para outros pior que Belzebú


Fugiram-me duas velas de casa. Tinha-as em cima da mesa de jantar, cada qual no seu castiçal, e desapareceram sem deixar pingo de cera nem de remorso. Corri atrás delas rua fora, mas no primeiro cruzamento virou uma para cada lado. As danadas. Voltei para casa de mãos a abanar.

Coloquei um anúncio no Encontra-me. Entre cães e gatos desaparecidos, lá estavam as minhas velas. Ambas brancas e simples, uma acesa e outra apagada. Ofereci alvíssaras a quem mas trouxesse de boa saúde e ainda por derreter.

Estas são velas especiais, têm de compreender. Velas que falam, que pensam, que têm opiniões e caprichos. Andaram desaparecidas durante vários dias e noites até finalmente dar com elas estafadas, caídas à porta de casa. A vizinha da frente levantou uma sobrancelha julgando que se tratasse de alguma reles feitiçaria, mas expliquei-lhe que “não, vizinha, isto são só as velhacas das minhas velas que me tinham fugido.”

Entraram de pavio tombado para a frente, receosas do ralhete que iriam levar. Encaixaram-se muito direitas e compenetradas nos castiçais enquanto viam puxar de uma cadeira para ouvir o que tinham a contar sobre a inusitada evasão.

Começou a acesa a falar. Vinha maravilhada. Por todas as ruas onde tinha passado, encontrou luz: reflectida nas montras das lojas, a cintilar nas paragens de autocarro, nos carros que circulavam na estrada; a dançar nos olhos das pessoas que cruzaram o seu caminho. Jamais imaginaria que houvesse tanta beleza no mundo, suspirava encantada.

Seguiu-se a apagada. Num suspiro profundo e tristíssimo, lamentou a malograda saída. Sentiu-se perdida, desajustada nas ruas afundadas em trevas. As pessoas eram obscuras e sinistras, tudo era desinteressante, escuro e vil. Nunca encontrou uma réstia de luz.

Homessa, que tontas, disse-lhes, enquanto fui buscar um espelho para colocar à frente dos castiçais, aquilo que viram foi uma projecção da vossa própria luz. Ou da ausência dela.

A acesa sorriu enternecida. Amolecida pelo calor inclinou-se para o lado e acendeu a companheira apagada que num segundo começou a irradiar luz, alívio e alegria. Prometeram não tornar a fugir.

Nós somos para os outros um reflexo daquilo que eles são. Para os detentores de luz, teremos sempre alguma luz e virtude. Para os mais sombrios, seremos vício e escuridão.

Aqueles que nos olham com bondade encontrá-la-ão também em nós; seremos anjos para esses — e piores que o belzebú para os outros. Deixá-los ver-nos com os olhos que têm, que importa lá isso. O arcano Rei de Paus inspira-nos a não parar de brilhar — e iluminar aqueles que se cruzam connosco.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1687
Imagem: licença CC0

A louca da camisa de dormir


A louca da camisa-de-dormir todos os dias faz o mesmo percurso que se cruza com o meu, ora de manhã, ora pela tardinha. Contemplo a visão onírica da senhora de meia-idade que atravessa a estrada sem pressa, a chinelar nas suas chanatas de quarto com borlas emplumadas em seda rosa-pétala, cabelos de nuvem e às vezes um robe puído sobre a camisa-de-dormir comprida.

Há no seu semblante triste a beleza silenciosamente desesperada e suspensa no tempo de uma mulher que naufragou e não pára de nadar mesmo sem mar entre as vagas dos dias que se sucedem — sem nunca chegar a terra.

Não usa chapéu para se proteger da chuva — parece mesmo não a sentir. Caminha de olhos fixos no vazio e mãos caídas. Vejo nela o avesso de nós, que saímos de casa vestidos, aprumados, ordenados e perfumados.

Ou talvez sejamos nós o avesso dela. 

Quando regressamos a casa, libertamo-nos dos atavios sociais e vestimos a roupa-de-andar-por-casa, que costuma ser confortavelmente triste e gasta, às vezes tem nódoas que não saem, está debotada e pingona, mas somos incapazes de a deitar fora.

A roupa-de-andar-por-casa é o sorriso que esmorece pelo cansaço ou pelo enfado da rotina. A maquilhagem que cai desmaiada nas olheiras, os cabelos desalinhados, as unhas dos pés compridas, os chinelos velhos e um pouco — ou muito — fedorentos, que cheiram a casa, a conforto e a amparo.

A voz áspera do catarro, a rabugice do Domingo à noite, o ranho a espreitar das narinas dos gaiatos, as caretas que fazemos para o espelho quando vamos a caminho do duche pela manhã. A suposta ausência de beleza a que nos permitimos entregar — e onde repousamos — quando nos sentimos seguros e protegidos do olhar alheio.

É a verdade do que somos, com os nossos maus cheiros, pêlos que despontam bravios onde menos queremos, cabelos oleosos junto à raiz e aquele bocadinho de sujo debaixo das unhas — a crua humanidade que não nos atrevemos a partilhar senão com aqueles que sabemos que vão amar-nos por completo.

O arcano Sete de Espadas aponta-nos para as nossas roupas de andar-por-casa e de andar-na-rua, para as mentiras que contamos ao mundo e a nós mesmos. Todos mentimos. Até o mais honesto de nós. Porque se mostrássemos toda a verdade como ela é, seríamos para os outros uma louca em camisa-de-dormir.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1686

Quatro Casamentos e Três Funerais


A respeito do cartaz “Não matem os velhinhos”, lembrei-me de uma gaiata que conheci, bem mai’nova e desempoeirada que a sirigaita da frase. Sorridente e surpreendente no seu batom vermelho-malagueta e óculos-escuros-femme-fatale, assentia com a cabeça enquanto escutava a sua história ser-me contada pela amiga que fez as apresentações.

Que a jovem contava oitenta e duas primaveras. Sorri com admiração, duas vezes a minha idade.

Que o marido tinha morrido havia meia-dúzia de anos num acidente de viação; que era ela quem estava ao volante. O meu sorriso logo esmoreceu, dando lugar ao silêncio respeitoso, compadecido e atrapalhado de quem ficou subitamente sem saber como reagir.

Mas que continuava a conduzir. E que entretanto tinha casado novamente havia poucos meses, lançava a entusiástica amiga enquanto a moça de oitenta e dois anos ia acenando com a cabeça numa expressão travessa. O meu sorriso voltou aos poucos a estender-se aliviado, ora bem, a vida continua, está certo, tem que ser assim.

Que era a quarta vez que casava. As minhas sobrancelhas subiram em espanto.
E todos pela igreja. Homessa, como?, indaguei. Eles morrem todos!, exclamou sem grama-de-drama. Não aguentei. Levei as mãos à cabeça e ri-me incrédula. Os lábios vermelho-malagueta riram também, da tragicomédia que por vezes é a vida; e que se apresentava ali, simples, despreocupada e limpa na doce e divertida senhora que vivera o dobro de mim.

Compreendi no seu riso que não havia tempo a perder, culpas carregar, tristezas a alimentar, dramas para chorar. Havia tão somente um ponteiro de tempo a marcar tiquetaque e um apetite voraz pela vida como o de uma criança que apenas quer os doces sem passar pela sopa e pela salada. Tudo é relativizado. As tragédias, o que os outros pensam, as preocupações, os medos. Só há tempo para o agora e para a verdade que, no fundo, são quase sinónimos um do outro.

Ajudei-a a subir as escadas depois da consulta. Os olhos brilhavam-lhe. Ia com pressa, afinal estava casada há pouco tempo e o corajoso marido desafiador das funestas estatísticas esperava-a em casa. Despedi-me grata pelo privilégio da aprendizagem que trouxe aquele sorriso vermelho-malagueta, com uma admiração e afecto que duram até hoje.

O arcano Ás de Paus aponta-nos a luz da vida e diz-nos que podemos fazer com ela tudo aquilo que quisermos, a qualquer momento. E que bom que é. Tenhamos a idade que tivermos. Aconteça o que acontecer. Só depende de nós. Mesmo que os outros não entendam as escolhas imprevisíveis ou fora do que é considerado “normal”.

Que a centelha divina possa brilhar enquanto houver caminho para andar. Os velhinhos já não são como antigamente; estão mais vivos, mais rebeldes e mais jovens que muitos jovens que andam por aí a passear cartazes.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1685
foto: Mansellgrl5, licença cc0

Numa Casa Portuguesa Fica Bem...


Ser português é sinónimo de ter um conjunto de pratos impecável no armário (que apenas é usado quando vêm visitas) e outro, já velho-gasto-e-possivelmente-lascado, que é o do dia-a-dia. Quem diz pratos, diz copos, toalhas de mesa ou as almofadas do sofá, que se viram ao contrário para “o lado das visitas” escondendo as nódoas na parte de baixo. Porque se os outros não virem as nossas mazelas, elas “não existem”. Não digam que não.

Temos aversão (para não dizer pavor) a parecer mal aos olhos dos outros e poupamos a-mais-fina-loiça para que as visitas, recebidas com uma cerimónia nunca assumida, vejam apenas o melhor — e não o real. Para “os de casa” usamos os pratos velhos, como se não merecêssemos o melhor que há no nosso próprio armário de cozinha. Homessa. Porque seremos nós assim?

Após profunda introspecção, a vossa velha escriba concluiu que a casa onde vivemos é um ser vivo e comunica como se fosse uma contraparte dos seus habitantes. Por exemplo, o conteúdo do armário onde guardamos os pratos pode ser, em muitos aspectos, semelhante ao interior do nosso coração:

1. Se existir uma infinidade de loiças, novas e antigas, demasiadas para o espaço existente, pode revelar um coração cheio de apegos, preso ao passado;

2. Ter um conjunto de pratos para o dia-a-dia e outro para as visitas, dir-se-ia que sugere incapacidade ou dificuldade em entregar-se de corpo e alma, sem reservas, na amizade, mantendo sempre um pé atrás;

3. Um conjunto de loiça para as visitas, outro para o dia-a-dia e ainda outro terceiro que ocupa um lugar "intermédio", falta de amor por si mesmo, crença de que não é digno do melhor.

Ai, Senhores. Pára tudo. Vou ali à cozinha ver o meu armário.

(Voltei!)

Esta é a história dos meus pratos: já tive dois conjuntos, um do dia-a-dia e outro das visitas (admito com algum embaraço). Entretanto, as transformações que a vida me trouxe levaram a que acabasse por ter no meu armário apenas alguns pratos soltos, restos de outros conjuntos, com um ou outro lascado. Destroços do passado e um coração partido.

Quando tomei consciência desta correlação, um dia desfiz-me dos pratos soltos e lascados e comprei um conjunto de pratos brancos. Simples, humilde e novinho em folha. Era tempo de deixar para trás o que estava atrás e de abraçar o presente.

Porém, o coração continuou partido. Na verdade, ainda está. Mesmo com pratos novos. Mesmo com refeições felizes. Creio que, como um prato fica lascado para sempre, um coração partido nunca mais volta a ficar inteiro. E ninguém garante que não se volte a quebrar ainda mais, em pedaços menores.

Contudo, não foi debalde a libertação dos pratos soltos e maltratados, pois representou o desejo e a possibilidade de recomeçar. E o facto de não ter comprado um conjunto extra de pratos, significa que não tenho um plano B. O que está à vista é o que há.

O arcano A Lua inspira-nos a adaptar-nos às diferentes fases que a vida traz, sem cair na armadilha de alimentar ilusões. Tudo é mutável, sensível, inconstante e tão frágil como um prato de loiça que cai no chão.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1684

O Vazio


A campainha está a tocar, vou ali abrir a porta: são os senhores que vêm instalar um contador bi-horário. Façam favor de entrar, é por aqui. Diz que é raro terem pedidos destes, que os últimos contadores do género foram instalados há muitos anos num mosteiro perdido no nevoeiro lá para as bandas do Nepal.

Hoje em dia toda a gente anda sempre ocupada com alguma coisa e as horas de vazio não despertam o interesse de ninguém, esclarece o sujeito mais alto enquanto ajuda o colega a tirar o contador bi-horário da caixa.

Isso não é de hoje, afianço-lhes. Senão, vejamos: antigamente, quando as pessoas iam à casa-de-banho, liam de-fio-a-pavio os rótulos dos frascos de shampô, do gel de banho, do ambientador; havia os que se entretinham com livros de banda-desenhada, com a literatura médica de alguma caixa de comprimidos que se encontrasse por perto — no fundo, tudo o que estivesse no perímetro de um braço estendido em torno do trono.

Hoje levam o telemóvel, a partir de onde enviam emails, sms, partilham fotografias, não perdem pitada das polémicas do dia nas redes sociais —, como quem depende de um fio invisível que o agarre ao mundo cá fora.

Sempre houve a necessidade de ter alguma âncora onde se possa prender a atenção — e que salve a Humanidade, apavorada com a perspectiva do vazio, de se deparar com ele. Assim, olhamos para fora — e nunca para dentro.

Ora bem, já está instalado o contador bi-horário. Só uma assinatura aqui em baixo, menina Hazel, se faz favor. Obrigado e um bom dia.

Fecho a porta satisfeita com o contador bi-horário novinho em folha instalado mesmo em cima da minha cabeça. Tudo para poupar, que o valor da energia anda pela hora da morte.

Planeio usufruir de uma hora de tarifa de vazio uma vez por semana. Sessenta minutos de telemóvel e computador desligados (não referi televisão porque não tenho) e, sem gente a atazanar-me o juízo, pretendo sentar-me e ficar dignamente a olhar no vazio.

Uma hora que, conto, será muito produtiva, pois, em vez de despender energia em tudo e todos, estarei a recarregá-la (sem perigo de electrocussão caso me distraia e entre em sobredosagem se deixar passar mais um quarto-de-hora ou pedaço de tempo que me valha).

Perscrutar o vazio em absoluta ausência de emoções pode parecer o equivalente a contemplar o abismo vertiginoso ou um poço sem fundo, mas há pouco espreitei para lá e pareceu-me seguro e arejado.

Confrontá-lo não me fez sentir vazia, mas preenchida, centrada. Capaz de reclamar todos os pedaços de mim que perdi por aí em angústias e preocupações, em mágoas e excessos de paixão, em dar mais do que recebi, em esperar e desesperar, em imaginar e desimaginar.

Reclamo-os e reintegro-os no meu vazio, no silêncio e na solidão, na paz absoluta.
Só então voltarei à tarifa de fora de vazio.

O arcano O Eremita envia notícias para o mundo através de um pombo-correio que pousou na minha janela. Trazia na pata uma mensagem que desenrolei com cuidado. Estava vazia.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1683