Ser português é sinónimo de ter um conjunto de pratos impecável no armário (que apenas é usado quando vêm visitas) e outro, já velho-gasto-e-possivelmente-lascado, que é o do dia-a-dia. Quem diz pratos, diz copos, toalhas de mesa ou as almofadas do sofá, que se viram ao contrário para “o lado das visitas” escondendo as nódoas na parte de baixo. Porque se os outros não virem as nossas mazelas, elas “não existem”. Não digam que não.
Temos aversão (para não dizer pavor) a parecer mal aos olhos dos outros e poupamos a-mais-fina-loiça para que as visitas, recebidas com uma cerimónia nunca assumida, vejam apenas o melhor — e não o real. Para “os de casa” usamos os pratos velhos, como se não merecêssemos o melhor que há no nosso próprio armário de cozinha. Homessa. Porque seremos nós assim?
Após profunda introspecção, a vossa velha escriba concluiu que a casa onde vivemos é um ser vivo e comunica como se fosse uma contraparte dos seus habitantes. Por exemplo, o conteúdo do armário onde guardamos os pratos pode ser, em muitos aspectos, semelhante ao interior do nosso coração:
1. Se existir uma infinidade de loiças, novas e antigas, demasiadas para o espaço existente, pode revelar um coração cheio de apegos, preso ao passado;
2. Ter um conjunto de pratos para o dia-a-dia e outro para as visitas, dir-se-ia que sugere incapacidade ou dificuldade em entregar-se de corpo e alma, sem reservas, na amizade, mantendo sempre um pé atrás;
3. Um conjunto de loiça para as visitas, outro para o dia-a-dia e ainda outro terceiro que ocupa um lugar "intermédio", falta de amor por si mesmo, crença de que não é digno do melhor.
Ai, Senhores. Pára tudo. Vou ali à cozinha ver o meu armário.
(Voltei!)
Esta é a história dos meus pratos: já tive dois conjuntos, um do dia-a-dia e outro das visitas (admito com algum embaraço). Entretanto, as transformações que a vida me trouxe levaram a que acabasse por ter no meu armário apenas alguns pratos soltos, restos de outros conjuntos, com um ou outro lascado. Destroços do passado e um coração partido.
Quando tomei consciência desta correlação, um dia desfiz-me dos pratos soltos e lascados e comprei um conjunto de pratos brancos. Simples, humilde e novinho em folha. Era tempo de deixar para trás o que estava atrás e de abraçar o presente.
Porém, o coração continuou partido. Na verdade, ainda está. Mesmo com pratos novos. Mesmo com refeições felizes. Creio que, como um prato fica lascado para sempre, um coração partido nunca mais volta a ficar inteiro. E ninguém garante que não se volte a quebrar ainda mais, em pedaços menores.
Contudo, não foi debalde a libertação dos pratos soltos e maltratados, pois representou o desejo e a possibilidade de recomeçar. E o facto de não ter comprado um conjunto extra de pratos, significa que não tenho um plano B. O que está à vista é o que há.
O arcano A Lua inspira-nos a adaptar-nos às diferentes fases que a vida traz, sem cair na armadilha de alimentar ilusões. Tudo é mutável, sensível, inconstante e tão frágil como um prato de loiça que cai no chão.
Hazel
Consultas em Oeiras e online
Tarot | Reiki | Regressão | Reprogramação Emocional | Terapia Multidimensional
Marcação: casa.claridade@gmail.com
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1684
Comentários
Cá em casa há apenas um conjunto de pratos (na verdade são 2 iguais - sim enquadro-me no ponto 1, tenho o coração cheio de apegos e preso ao passado!!! E ainda bem que não estamos a falar de copos... Nem imaginas quantos tenho nos armários :O
Mas voltando aos pratos: alguns tem lascas e cada vez que olho para elas penso "tenho de deitar este fora" e nunca consigo fazê-lo! É exatamente por esse motivo que tenho 2 serviços iguais, para me poder desfazer deles se pudor, mas...
Quando recebo visitas, confesso que procuro os pratos sem lascas! LOL
Sara, http://fleaecoffee.blogspot.pt/
Apesar de não me recordar se já comentei antes aqui (sou um pouco tímida), acompanho este canto mágico há anos. E é sempre um prazer ler seus textos. Os assuntos sempre me fazem erguer os olhos da tela do notebook e refletir - com um pequeno sorriso nos lábios - sobre suas palavras. É muito bom!
Sobre as louças, aqui, no Brasil, costumasse tem-se a mesmo esta divisão: uma louça mais velhinha para a família usar no dia-a-dia e outra mais "chique" para as visitas. Eu fui criada com esta divisão apesar de achá-la triste pois amava quando podíamos usar a "louça de festa" que era mais bonita (não os feios Duralex cor âmbar!), mais delicada e bem acabada (a mais simples tinha defeitos da fabricação...). E como havia/há pratos, copos, xícaras, panelas na minha casa materna. Minha impressão sempre era que viria um batalhão comer em nossa casa a cada fim de semana. Contudo, incrivelmente, as melhores louças e as muitas panelas eram guardadas como tesouros nos armários e praticamente intocadas.
Já eu decidi comprar para minha nova casa apenas aquilo que me desse prazer em usar. Gosto de louças em cerâmica (gosto pessoal mesmo), como se fossem feitas artesanalmente; e também daquelas com motivos delicados mas modernos. E, minha grande paixão, as canecas! Sempre que há um dinheirinho sobrando e encontro uma que gosto, eu compro. Para tomar um chá (que acompanha um bom livro), ou um chocolate quente naqueles dias em que só o cacau nos salva do mau humor, ou então aquela sopinha gostosa (Outono chegou aqui e as sopas já se preparam para meu ataque! Hehe). E quem quiser, pode usar porque é pra isso mesmo!
Mas o que me enseja sobre a louça não é o ter, mas sim, como você falou, Hazel, o utilizar pelo meu prazer. E, sinceramente, se quebrar alguns pratos ou copos, eu mantenho o resto e recombino-os com outras louças. Porque pra mim vale mais a satisfação de usar quando eu quero e não de acordo com convenção alguma. E pra mim, a máxima é verdadeira: coisas eu uso; pessoas eu amo e guardo com carinho.
Abraço para ti!